domingo, 30 de dezembro de 2012

DE DENTRO DOS OLHOS DO LOBO AZUL


Quando dei por mim eu tinha uma coluna vertebral ereta, me apoiava sobre duas patas e dava os primeiros passos. Nunca mais seria o mesmo de antes.
Meus dedos (ou serão meus olhos?), a julgar pelo cheiro que exalam, parecem que ainda estão afundados dentro de ti.  
Seja tolerante comigo, é quase certo que logo mais já não sentirás o cheiro de enxofre quando espetar minhas veias.  Eu só preciso de um tempo.  Antes que me arranquem o coração. Exatamente o que querem de mim. Olhando o nível de oxigênio, começo a refletir: deveria mesmo ter atravessado a rua?
É como o poeta, que certa vez disse: ”o corvo pensa no fígado, devora a solidão”.
Meu repto ao poeta: o corvo pensa no coração, mas é o cérebro o que ele devora.
Não sei se chego lá, não sei.  Aquele trem, o vagão ficou mais distante. E não sinto meus pés. Como naquele sonho da infância distante. Na carroceria do caminhão. Lotado. Era festa. Muita gente. De repente, caio. Ninguém percebe. O caminhão contorna a curva. Grito.  Ninguém ouve. Eu me esgarço. Ninguém vê.  O caminhão segue. A vida segue.  Minha própria voz (ou seria minha dor?) me ensurdece. Tento me levantar, e percebo que não tenho mais minhas pernas. Não vejo o sangue. Apenas estou no chão, e o mundo desce sobre mim, sem dó. E não são apenas quatro.
E esse céu, e essa nuvem blanca?
Será apenas uma passagem ou serei eu que não estou morto Campos de Carvalho?
Seja tolerante comigo. Já-já te deixo em paz. Amanhã, talvez, com certeza.
Não sei.
Olhando bem, percebo que ainda tenho a coluna vertebral ereta e é com as pernas sobre as quais me apoio que darei meus últimos passos.

terça-feira, 25 de dezembro de 2012

CONTOZINHO DE NATAL II



Um casal saíra de um restaurante.  O homem cambava. Bêbado, imaginou.  Então, Jesus Cristo, com uma arma de brinquedo, a única para os três filhos, disse: É um assalto.  A mulher, a infeliz mulher, delegada, sacou de uma 465 e deu-lhe três tiros nas fuças.  



domingo, 18 de novembro de 2012

PÔR D0 SOL

Aquele que ali vem não é Jomar, apesar do andar estabanado do Jomar. Esse, que aí vai, é quase um clone do Rudá e seus passos miúdos e ligeiros. Esta que logo se torna uma estranha bem que podia ser Sara, amor da minha longa vida jamais realizado num único beijo sequer, mas não é a Sara, a mais bela das desdenhosas do nosso tempo. Por que o tal médico dela o escolhido? Ainda hoje desatino a razão da extremada sorte dele, que o cu voltado pra lua nunca tive. De longe, se apurar bem a velha vista, vejo Homero, apressado rumo ao jornal onde diariamente não dava trégua aos corruptos, mesmo sempre derrotado. E aquela acolá...

Bem, uma vez por semana me trazem do abrigo de anciãos até aqui e ali, num banco da igreja do Amparo a custo me ajoelham, e rezo. Ele, porém, a súplica há muito não me atende e vou ficando aqui quando todos os que amo e odeio já lá, aquietados, no outro lado do mistério, estão. Que pecado tão capital cometi nessa quase centúria? Não, minhas faltas não têm esse valor, que nunca passaram elas de erros que só a mim prejudicaram, como quando joguei tudo pro ar para correr atrás de um rabo de saia que logo se esvaiu, coisas de que essas doenças que me torturam já são juros mais que suficientes acrescidos ao pagamento que, por uns trinta anos, já efetuo. Então, por que não me atende Ele o pedido? Por que não me pode a Noite sobre mim, enfim, descer? Até meus desaparecidos inimigos, uns dois ou três mais empedernidos, até eles decerto concordariam que fazer cem anos é sacrifício que, como dizem no tempo de agora, ninguém merece...       

EU VI YO VEO

Eu vi um ministro de estado decir que o objetivo é mandar aquele povo de volta ao medievo.
Eu vi que um dos cavaleiros (aquele do caballo cheio de musgo e que atende pelo nome de intolerância) tremulava o estandarte negro e de sua boca, enquanto falava, escorria o sangue do inocente.
Eu vi as sapatas e as lagartas avançarem sem peias sobre la ciudad del hombres desterrados e não era nenhum sentimento do tipo isso eu já vi antes.
Eu vi que a guerra y el fuego são o alimento do homem e ele não tem fim.
Eu vi um andarilho no meio da carretera no meio da noche olhava para o firmamento e contava tantas estrelas quanto sua memória suportava e não compreendia porque algumas delas mudavam de lugar.
Eu vi um bardo manco desconstruindo versos que acabara de tecer para depois canibalizar um a um como quem pide perdón pelo que podia ter sido e não foi.
Yo vi un meteoro fumegante tingindo o céu de cinza e por um momento me lembrei da estrela cadente da minha memória de menino.
Eu vi um gato negro ele cruzou a calle ele se escondeu no beco ele seus olhos confiou a mim eles queimaram-me as mãos.
Eu vi um cão pestilento de ojo azul arrastando sua pata traseira sem forças para ganir e nesse momento eu pensei talvez seja a hora de estocar comida.
Eu vi una virgen de pelo largo riscando o chão com uma varinha de condão e eu disse nessa jangada de pedra eu também quero um lugar.
Eu vi um homem se alimentando da própria hambre.
Eu vi num cruzamento qualquer entre duas ruas ninos engolindo bolas de fogo e fumaça.
Eu vi meninas de rostos sujos de olhos fundos exibindo rosas desfolhadas antes da primavera de mayo.
Eu vi una mujer com o ventre vazio e um menino não nascido entre caixas e papelões.
Eu vi la lumbre lucir  enquanto la luna  se escondia no oriente.
Eu vi o acontecer o descortinar o tecido se formando a teia se erguendo o ovo da serpente o amor sem pecado,  pero cuando abri os olhos eu já estava muerto.
Esas y otras cosas yo vi,
mas, eu, asi como nosotros, nada hice.
Eu também não vi el otro.
Eu também não lancei um olhar porvenir.
Solamente vi.
Unas cuantas eu deixei de ver, acho que de propósito.
Aquellas eu escondi.
Otras yo sé que nunca.




 

domingo, 30 de setembro de 2012

A REDENÇÃO DE SÍSIFO

(esta é uma obra de ficção e, portanto, não resolve o problema do paradigma do fundamento sem fundo)

Como anda a capacidade de perdoar? Sim, eu O desafiei, o que foi compreendido e interpretado como uma ofensa. E aí, porque não pôde se conter, revelou-se a face cruel e vingativa. Foi há tanto tempo atrás. Mesmo assim, Tua ira não se aplaca. Não é exatamente o peso que aflige. O que esgarça a alma, o que atormenta, é o fato de, a cada recomeço, ter que relembrar a triste existência. Nisso, tenho que reconhecer, Você foi perfeito. Tivesse arrancado a memória ou a capacidade de compreender os sentidos, a história já teria tido sim um desfecho definitivo. Cansei-me, essa é a verdade, se é que há uma além daquela absoluta.  E hoje, sobretudo hoje, acordei com um ar de enfado que, acredito, jamais encontrará outro que o rivalize. Chega.  Pra que carregar o fardo até o topo, se, antecipadamente, já sei que sempre terei que voltar ao ponto de partida? Se a cada retorno, mais um degrau na escala da degradação humana foi acrescentado?  Se, no final das contas, nada, mas nada mesmo, faz sentido. Sem falar que aqui, deste lado ocidental, tudo não passa de um faz-de-conta, quando não é uma comédia. Essa a realidade presente, a mesma de ontem, a que se repetirá. Afinal, porque resistimos? Todo esse esforço, desde sempre, atende uma única razão prática: manter-se vivo, estar-aí, ainda que o custo, altíssimo, no meu caso, seja a perda da dignidade. Terá valido a pena? De que adianta, se no derradeiro dia o encontro que vimos adiando será inevitável?  Tudo é inútil. E na parte de cima das coisas inúteis nem é necessário dizer quem está à frente. Sejamos realistas.  Já nascemos condenados à morte, alguém já disse, meio que filosofando.  Recuso-me a partir de agora. Quero a finitude de volta. Cheguei ao limite. Aqui eu paro. Vou descer. Mas antes que me esqueça, obrigo-me a dizer: nada me tira da cabeça a ideia de que Você Falhou. Eis aqui a prova quase morta disso. Que Hermes tenha piedade e me entregue nas mãos de Hades.

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

O MATADOR



Aquele que tentara se matar, o primeiro.  Puro altruísmo.  A revolta do n.º 1, quando se viu no leito do hospital, sensibilizou-o.  Também a sedação que lhe foi administrada, apesar dos aparelhos indicarem vida, ganhou, nele, a feição de morto, como se o destino para ele traçado se encerrasse naquele dia.  Sim, atenderia ao desejo do moribundo antes de ir pra casa.
O moço que lhe trouxera, inconsciente, apenas deixou-o no hospital. Saiu murmurando filho da puta repetidas vezes. Durante o dia ninguém o visitou. Afora esbravejar por lhe frustrarem o suicídio, o desgraçado silenciou-se; mesmo quando perguntado se queria que alguém fosse avisado.  O sorriso de desdém, quando momentaneamente parou de se debater na cama tentando livrar-se das cintas que o prendiam, era mais claro do que um não irredarguível.  Imaginava, então, que, em sua visita noturna, ele estaria sozinho, como, parece, sempre esteve.
O apartamento em penumbra: a iluminação da rua, acanhada, visitava o suicida como um tênue fio de vida. Mas bastante para encaminhar-se até o infeliz e manusear o scalp, esvaziando em sua veia, rapidamente, todo o ar contido na seringa. Pronto.  Satisfeito, logo mais, o desejo do paciente.
Aquele que tentara se matar, o primeiro.


segunda-feira, 3 de setembro de 2012

ATO FALHO


Sozinho, demais, no apê. Trancou a porta da cozinha. Fechou o basculante. Pôs algodões nas frestas. Ligou o gás. Deitou, de bruços, no chão. Surpreendeu-se numa cama de hospital. Doutor, quem teria sido o merda que...

domingo, 26 de agosto de 2012

... CANIVETE CORNETA À MÃO, GOLPE PRECISO

Por falar em malabarista, um de farol, no próximo sinal de trânsito. No lugar de bolas ou bastonetes, limões. Pego meu meio taco de sinuca, que trago escondido no casaco. Ando sempre de casaco. Por isso ninguém mexe comigo, pensam que se trata de um louco, pelo fato de usar casaco nesse calorão.  Eu sempre trabalho com três opções de golpes. Não vou acertar na cabeça, já decidi. Seria fácil demais. As pernas, dos joelhos para baixo serão o meu alvo.  Se optar pela parte superior das pernas, não vou bater com tanta força, quero apenas parti-las ao meio, mas sem separá-las, no máximo deixarei igual a dois mocotós unidos apenas pelo tecido subcutâneo, lado a lado, da mesma forma como ficam expostos no Box 14 do mercado do Mafuá depois do meio-dia, as moscas varejeiras circulando em volta.  Bem que eu poderia ser mais cruel. Se assim resolver, o objetivo será acertar os tendões do calcanhar de Aquiles com força suficiente apenas para rompê-los, sem abrir qualquer corte. Mas para isso, o golpe tem que ser perfeito. Combinar força com precisão. A ideia me surgiu a partir de uma história que me contaram do meu bisavô, esse sim um homem cruel, segundo soube, pois não o conheci em vida. Mantinha sua propriedade completamente cercada. Quando um animal, desses de pequeno porte como um cabrito ou um leitão invadia os limites de seus domínios, aproveitando uma brecha ou rompendo a cerca, ele mandava os agregados prender o bicho. Em seguida, pegava o velho canivete Corneta e, com um golpe preciso, cortava os tendões das patas traseiras do pobre animal. Maior precisão cirúrgica seria impossível, de tão perfeito o talho que se abria. Nesse tempo ainda não se falava em sociedade de proteção aos animais. O passo seguinte era jogá-lo por cima da cerca de arame farpado e contemplar a dolorida cena. Para deambular, o cabrito ou o capado ou o pequeno cordeiro, estropiado, tinha que apoiar todo o peso do corpo nas patas dianteiras. As traseiras, essas apenas se arrastavam com muito esforço. Tanta era a dor que, à medida que lentamente se arrastava, um rastro de mijo irrigava o chão estorricado. Era de dar pena, segundo dizem. Sei que é cruel demais, mas foi pensando nessa imagem que eu mudei os planos novamente, assim como abandonei a ideia inicial de arremessar para longe a cabeça do malabarista, e decidi acertá-lo com o taco nos tendões e com um desafio a mais: o serviço tinha que ser limpo, sem corte, sem sangue. Além do que, queria também satisfazer uma curiosidade. Saber se era tão bom malabarista a ponto de se manter em pé e continuar a executar o seu número até que o sinal verde abrisse.
 
Fiquei de tocaia. Quando o sinal vermelho acendeu e ele começou a jogar pra cima aqueles limões murchos, eu me aproximei rapidamente por trás e desferi dois golpes sequenciados, quase instantâneos, um para cada tendão. Nem deu tempo de o malabarista tentar se apoiar num deles e se defender. Foi ao chão e espatifou-se como um tomate podre. Os limões rolaram em direção à sarjeta. O trânsito foi interrompido. Na confusão, sai dali rapidamente. Um caprino tem mais fibra na têmpera do que um ser humano, conclui com uma serenidade de fazer inveja.
 

domingo, 19 de agosto de 2012

ISTO ACONTECE ATÉ COM AS MELHORES FAMÍLIAS*

     ... pela manhã Leopoldo parava-o.
     -  Vai sair, vô?
     - Para o traba...
     Então despia-se do terno de linho e vestia a camisa de casimira, a calça cáqui, já surrada. Levava o neto ao jardim; mostrava-lhe como limpar as gaiolas; sentava-se na cadeira de balanço:: pitava dois cigarros e dormia. Sonhava com uma jovem loira, cabelos curtos, seios pequenos, olhos glaucos e lábios apetitosos, que o chamava de paizinho e gemia em seus braços.
     - Lu!

     - Sonhando, paizinho?
     Vez em quando, um jogo de baralho com os poucos amigos, um passeio pelo Largo da Matriz. Lu começava a impacientar-se com sua presença reclamando da comida, da sujeira nos móveis, da desarrumação dos netos, enquanto ela trabalhava na casa.
     À noite, sentava-se sofá e assistia a todos os programas da tv. Depois, ficava a arrastar os chinelos do quarto ao banheiro. Algumas vezes sentava-se à escrivaninha: pensava em escrever suas memórias, um romance sobre o bebê de proveta, um poema moderno. Pegava algumas folhas de papel, uma caneta, e escrevia uma carta para a jovem loira...
     Numa manhã, olhando-se no espelho, notou que estava envelhecendo rapidamente: lábios trêmulos, rugas na testa, nos pômulos... Pensou que finalmente tinha alcançado a maturidade, podendo assim dedicar-se à literatura.
     Lu implorou para que ele procurasse uma ocupação qualquer.
     - Já trabalhei o tempo que devia.
     Trecho do diário do Sr. X, membro da família:
12 de janeiro de 1978
Ele falou que quando lavava aos mãos para jantar, o polegar e o indicador da direita ficaram flutuando n'água; enxugando-as, o polegar e o indicador da esquerda ficaram entre a toalha.. Depois colocou os dedos num vidro, escondendo-o por trás das camisas, no guarda roupa.
    Quando Lu falava de sua ociosidade, ele dirigia-se ao guarda-roupa, retirava o vidro, olhava os dedos em decomposição e se acalmava.
    Nos primeiros dias depois do acidente tentou movimentar as mãos: quebrou o bibelô da mesinha de centro; escreveu um poema processo e pensou em levá-lo à Livraria Dilermatt, saber a opinião daqueles velhos da Academia de Letras, mas desistiu.
    Leopoldo agora era quem limpava as gaiolas, acendia-lhe os cigarros.
    Decerto que não possuía quatro dedos nas mãos, mas a mente funcionava. Então deixou de lado a ideia do romance, das memórias, do poema moderno, e começou a elaborar poemas somente com pontos de exclamação e interrogação, aspas e reticências. E para os que tivessem a ousadia de dizer que aquilo não era poesia, ele simplesmente citava Henri Lefebvre: Uma teoria nova não é jamais compreendida se se continua a julgá-la através de teorias antigas e de interpretações fundadas (à revelia daquele que reflete) sobre essas teorias antigas.
     Comentário de A.I.D. à Cherloque, amigo da família:
     - Ele tentou sair de casa, depois de nela permanecer por dois meses: eu vi, acredite, na saída, uma das pernas foi de encontro ao sofá, largando-se do corpo; procurou recolocá-la, não conseguiu...
    Não mais saiu de casa.
    Fragmento de uma carta de Lu à Joaquina, sua comadre:
    ... ontem, às 19 horas, como fazia todos os dias, ele foi ao banheiro, onde costuma permanecer meia hora sentado no vaso sanitário: dizia-nos que ali os poemas surgiam (...) Sabe, eu, até hoje, não entendi por que ele não mais se interessava pelos programas da tv; alegava que agora era um escritor e que tv é alienação (...) Depois de assistirmos a novela das sete, ficamos conversando na copa e nos lembramos dele. Leopoldo bateu na porta do banheiro, que cedeu sem muito esforço. Ele estava encostado na parede. No vaso sanitário, flutuando n'água, encontramos uma ameixa. Todos nós ficamos espantados com a apatia que deu nele. E o pior é que ele comera daquela fruta pela última vez três meses atrás...
     Mais tarde, Dr. Lopes afirmou que aquilo não era ameixa, mas sim um cérebro.


* Conto, revisto, publicado originalmente na coletânea Um dedo de Prosa, em 1979.


domingo, 12 de agosto de 2012

ARAGUAIA


Num dia branco, dia comum de faxina, Vítor deparou, sem querer, a mensagem de Telma. O autor do texto datilografado, com as letras G e R sempre maiúsculas, era Conrado, mas vinha, ele sabia, da irmã de Maria Lúcia. Calou-se. Percebia, porém, a mulher cada vez mais angustiada. Não devia soltar-se dela?  Tinha o direito de, para não perdê-la, prendê-la?

O temido bilhete, certo dia, na porta do quarto. Fitou-o, lágrimas caindo. Então foi ver Araguaia, travessa e linda, no berço.

— Filha, requeri e enfim recebi do governo uma indenização, após o reconhecimento oficial de sua mãe como desaparecida política. Este cheque lhe pertence.

— Pai, entregue isso à Anistia Internacional.

Por um instante, Vítor vislumbrou Maria Lúcia. As mesmas feições. Os mesmo gestos. Os mesmos atos. Abraçaram-se, Araguaia no seu colo, que nem nos árduos e brejeiros tempos de menina.

Pouco depois, caminhando pelas margens do Poti, ladeado por shoppings e espigões, ela parou e fixou-se no próprio nome. Araguaia. Araguaia. Araguaia. Mirou o rio de sua aldeia, belo porque o rio de sua aldeia. Pensou no pai. Pensou na mãe. Sim, o amor existia!

— Moça...

Assustou-se.

— Uma esmola, por Deus...

Deu um dinheiro ao mendigo e pôs-se a refletir, à visão daquele ser esfarrapado, que as injustiças permaneciam intactas. Mas ela se chamava Araguaia. E seu nome, como lhe dizia o pai, seu nome, filha, seu nome é uma pintura rupestre gravada na carne e no sangue da truculenta história deste país.


*Conto publicado originalmente em Revista Pulsar, Teresina – PI, ano 1, no. 1, mar/jun, 1998, p. 10-11.

domingo, 5 de agosto de 2012

DESTINO: ÁFRICA




No princípio, o verbo.  E não se entenderam.  Tinha certeza de que não era bem-vindo ao chegar em casa. Nem por sua mulher; nem por seus filhos.
Então, no primeiro dia, quando todos estavam fora, arremessou à mochila o mínimo necessário e saiu de casa.  Deixava para trás o seu passado, insistia em dizer, em cada passo que dava.  Rompia os laços com a família, com a amante, com os amigos, com o trabalho. Dormiu em uma espelunca de beira de estrada ouvindo os estrilos de raparigas.
Cedo, no segundo dia, pegou carona com um caminhoneiro que se dirigia a Fortaleza.  Deixou-se em Tianguá.  E de lá seguiu para Ubajara, entre cheiros de flores ali cultivadas.  Até então, não sentia o fedor que lhe fixou o sol abrasador do Piauí.  Bastou caminhar um pouco mais, descendo a serra, depois de Ubajara, eis que o azedume se manifestou. Naquela noite dormiu na serra, em um frio que lhe fez agasalhar-se como um feto.
O sol o acordou no terceiro dia.  Banhou-se em uma queda-d’água.  Seguiu rumo a Guaraciaba do Norte.  Ali pegou uma carona até Santa Quitéria.  Pensou mandar, de uma lan house,  um e-mail para os filhos: dizer da saudade que deles sentia; e não de quanto resolveu partir, mas bem de antes, quando A., o primogênito, queria ser cowboy, e R., a caçula, imaginava-se cientista. Mas apenas leu notícias de Teresina.
Acordou em Santa Quitéria no quarto dia, em um apartamento relativamente confortável.
No quinto dia dormiu, entre Santa Quitéria e Canindé, olhando o céu estrelado. 
No sexto dia chegou a Canindé.  Não se dirigiu à Basílica São Francisco.  Receou que o destino que traçara fosse alterado.
No sétimo dia, pegou um ônibus para Fortaleza.  E em lá chegando rumou para o mar. Olhou-o. Em seguida, deixou que as ondas massageassem os seus pés, enquanto buscava o horizonte. Pronto para a jornada, lentamente encaminhou-se para a África.


domingo, 29 de julho de 2012

UM TARÂNTULA NO NINHO DOS POETAS


Peço uma cerveja. Quente. Só tem copo descartável, diz o garçom com aura de poeta. No primeiro gole, desisto. Peço um uísque. Não tem gelo, diz o barman, agora com mais aura de garçom do que de poeta. Fazer o quê? Bebo de um gole só. Puro álcool. Outro cavalo paraguaio, eu peço. O garçom, com o olhar de reprovação e postura de proprietário do estabelecimento, diz que estou enganado, o uísque é legítimo, selado, e que se eu quiser tenho que comprar a ficha antes. Não esquenta, cavalo paraguaio é um poema que estou trabalhando.

BR-3, o nome da banda, toca Voodoo Child. O vocalista anuncia que o microfone está à disposição de todos. Os bardos fazem fila, começam a declamar. O rio é o mote. Uma poetisa com os cabelos desgrenhados agarra o microfone e eu temo pela sua sorte. Gesticulando-se de forma desordenada, tal com uma aranha peçonhenta bêbada, tentáculos para todos os lados, as pernas parecendo duas palafitas movendo-se em areia movediça. Começa a berrar: preciso urgentemente fazer um poema sobre o rio de minha cidade. Na estrofe seguinte, troca a cidade pela aldeia. O pobre do guitarrista faz malabarismos para acompanhar o ritmo ora estridente ora sonolento. Repete os mesmos versos até cansar. Ao final, joga o microfone para um dos lados e se despede diante de efusivos aplausos. Dirige-se a uma mesa, onde lhe aguarda um grupo animado de jovens, um deles escreve um poema num rolo de folhas duplas de papel higiênico. No meio do caminho ela arranca um copo de cerveja das mãos de um, que apenas olha. Mais à frente, tropeça numa garrafa jogada pelo chão, quase cai, mas consegue sentar-se num banquinho de madeira e grita: garçom, mais uma, que eu preciso escrever urgentemente um poema sobre o rio da minha cidade.

Já vou pra quarta dose. E parece que ganhei a simpatia do garçom-poeta. Mandou comprar um pacote de gelo e água de coco, mas me fez prometer que tomaria pelo menos mais 03 doses.

O tempo passa. Os poetas continuam se revezando. O tema de sempre. Tem um que canta a beleza do rio coberto de aguapés. Ainda bem que não tem nenhum ambientalista por perto. Deixem o rio em paz, resmungo.  Peço uma caneta e um pedaço de papel e escrevo:
Cavalo paraguaio
Deus!, Deus!, por que me persegues?
Por que não me dissestes que eu nasceria para a morte?
Por que me destes um coração fraco?
Por que tenho que me deitar neste leito de Procusto?

Meu Deus! Isso não é um poema, é um pedido de socorro, reflito. E o que é que o dna do cavalo tem a ver com a ira divina, com a frágil condição humana? Nunca vou ser um poeta, concluo desolado.

A oitava dose eu tomo com gelo e água de coco. O dono do bar, poeta nas horas vagas como ele mesmo diz, e dublê de garçom aos finais de semana, agora é um poço sem fundo de sorrisos para comigo. Também, conseguiu recuperar o investimento e já tá no lucro.

Lá pelas tantas, me faz um convite. Quer que escrevamos um poema a quatro mãos. Lisonjeado, agradeço e gentilmente recuso. Percebo que não gostou e insiste. Apelo para o seu instinto patrimonialista e digo-lhe que ainda tenho reserva para mais duas doses, desde que ele guarde segredo do que vou dizer e não se ofenda. Pode falar, ele diz. Não sou poeta, sou contista, digo baixinho, olhando firme nos seus olhos, certificando-me, antes, de que não há ninguém por perto. A reação foi imediata. Deu dois passos para trás, quase cai. Seus olhos cospem fogo. Por um momento pensei que ele iria acionar os seguranças ou resolver a parada com as próprias mãos. Comecei a suar frio. À minha volta, pareceu-me que todos me olhavam com ar de rejeição. Deve ser o efeito do cavalo paraguaio, pensei.

De repente, para minha surpresa, meu interlocutor interrompe-me os devaneios, dizendo: tudo bem, você é um bom cliente. Sirvo-te mais duas doses, sem gelo e sem água de coco, mas com uma condição: nunca mais me volte aqui, entendeu?

Ao final da décima dose, me sentindo um estranho no ninho, saí dali como entrei, sem ser notado, e decidido a escrever este conto.

domingo, 22 de julho de 2012

BRUTA FLOR

Senhor Juiz de Direito da outrora bucólica Bodas do Sertão,


este agora largado homem, na pia batismal PEDRO nominado, desde os idos de Juno de 2011 sem PÉTALA DE OLIVEIRA, brasileiríssima, bordadeira de mão cheia, vivente hoje em lugar incerto e não sabido, vem dizer-lhe, dolorosamente, DOS FATOS:


1. O primeiro amor passou.
    O segundo amor passou.
    O terceiro amor passou.
    Como os corações continuavam, casamos no Dia de Santo Antônio, 1996 anos após a Grande Epifania. Ela estava linda no decotado vestido branco de cauda longa e, exultantes dentro daquela noite banhada por insistente chuva fina e aromada com inesquecível cheiro de terra molhada, achávamos que seríamos (quanta arrogância!) felizes para sempre...


    2. Não tivemos filhos; não transmitimos a nenhuma criatura o legado  de nossa miséria.
   
   3. Também nunca nos ardeu o desespero de ser dono de nada.


   4O motivo desse vazio, pleno da presença de uma ausência, a razão mesma disso a que os líricos chamam de Saudade? Não há motivo, nem razão. O amor acaba, seu Juiz!
   
   5. E, pensando bem, se acabou, não era amor...
   
   6. Ainda assim, não é porque SEI que ela não voltará que não hei de lhe deixar a porta, eternamente, aberta.  
__________________
PEDRO UMBRA
FEITOR DE FACAS
Rua da Soledade, 11
Cristal Quebrado - PI
__________________         

DO DIREITO E DOS PEDIDOS:


Em face do exposto, nos FATOS, pelo constituinte, 


LUÍS SOTERO, causídico (OAB 1635) infra-assinado que representa legalmente o já supraqualificado artesão, consoante mandato anexo, vem, respeitosamente, a V. Exa, com fulcro no CCB, em especial nos arts..., PEDIR, por ser justo e de direito, que... 

domingo, 15 de julho de 2012

É UMA MANHÃ APRAZÍVEL,


pensa, enquanto, sentado no banco, observa jovens na grama.  Em pequenos grupos, ou aos pares, mostram-se viçosos.  Volta a sua atenção ao desespero de Luísa diante da chantagem de Juliana.  Não se concentra na leitura: a algazarra juvenil o incomoda.  Uma moça olha-o.  Envaidece-se.  Imagina-se ainda atraente.  Instintivamente, afaga o seu saco e o seu pau.  Velho saliente, ouve da jovenzinha.  As amigas, festivas, recebem-na, e, em seguida, todas o olham. O desprezo é evidente.  Sorri diante de sua capacidade de desnudá-la por completo. A moça que o chamou de velho saliente, por exemplo, de costas, cabelos quase a alcançar a bunda, que lhe chama a tocá-la, a abri-la.  Vez por outra, o movimento do corpo torna o seio ponteiro de uma bússola que indica o paraíso. As outras mostram-lhe as bocetas (imagina!) saradas.  Quase que todos os seios, tão acanhados, enganosamente colocam-nas como impúberes. Uma jovem, deitada de bruços na relva, absorta em uma leitura, faz-lhe deter sobre a sua bunda, linda com dois montes irmãos, pronta para ser coberta.  Lembra de Maria, aquela infeliz. Miseravelmente, depois de lhe sugar suas posses e sua virilidade, deixou-lhe apenas com HPV e a capacidade de fantasiar orgias.  Levanta-se, deixando o parque para trás.  Atravessa a avenida.  Entra no edifício que mora.  Rapidamente, adentra ao apartamento. Displicente, lança o português sobre o sofá. Faz uma trilha com os calçados, a camisa e a cueca, o que, no passado, não seria possível. Alcança a corda pressa ao parapeito da varanda. Veste o laço em seu pescoço, e, povoada a memória com bocetas, seios e bundas, salta para fora.

domingo, 8 de julho de 2012

JIM MORRISSON SOBE AOS CÉUS


                                                                                              Zaira, este é pra você

- Anda, acende meu fogo, me leva pro outro lado.

- Tarde demais, baby, tarde demais. Eu já estou lá, mas eles chegaram antes.

- Eles quem?

- Os mesmos, os mesmos que tingiram de sangue as botas de Lorca. Já estão no corredor. Não há mais tempo.

- Abra a porta, me leva...

- Você não iria gostar. Não tem fim.

- Não importa, quero ir.

- Não, não iria gostar de ver.

- Mas não é um jardim de tulipas brancas?

- Não mais, baby, não mais. Não fui Ulysses o suficiente. E o gosto amargo daquele beijo não sai de mim, não sai.

 - O que você vê agora?

- O horror, o horror, e depois um jardim de pedras a perder de vista.

- Volta então, não me deixe, tenho medo.

- Tarde demais, baby, tarde demais, this is the end. Eles já exibem minha cabeça numa vitrine.

- Onde?

- Você não está vendo?

- O quê?

- Os cavalos, os cavalos! Eles foram jogados ao mar, sem nenhuma chance, sem nenhuma chance.

- O que faço eu então, Jim?

- Lembre-me pelas palavras, baby, pelas palavras, apenas isso, em memória de mim.




domingo, 1 de julho de 2012

GARÇOM!



Eu, se o autor do conto, retiraria do título a locução adjetiva.
— O Quarto Quarto da Casa... O Quarto Quarto. Gostei!
Cortaria também a terceira página.
— Toda?
É. Esse namoro aí é imbecil.
— Um pouco piegas, talvez...
Não. Imbecil, mesmo.
— Porque o cara é do tipo que ainda manda flores?
Detesto flores.
— Eu sei. Mas ele, não.
Corte esse namoro.
— Já mudei o título...
Suprima o namoro.
— Aí a mensagem de perdão, que quero passar, some...
Literatura não tem que ter mensagem.
— Mas sempre há mensagem...
Pois o leitor que a ache, com lupa.
— E pensar que você já foi um escritor engajado...
Erro de extrema juventude, meu amor, isso.
— Não sou mais tão jovem, eu, é certo.
Você é linda!
— Olhe, se eu encerrar aqui, perco o desfecho.
Fecha no clímax...
— O leitor não gosta assim, eu acho.
E a vida?
— Que é que tem a vida?
A vida por acaso é do jeito que gostamos?
— Estou falando de literatura.
Ah, tá...
— Certo. Namoro eliminado. E agora?
Agora é podar a segunda página.
— Inteira?
É. Conto não é oceano que se derrama, mas dique que o contém.
— Viva! Você gostou da minha frase de abertura!
Conto com duas páginas já é oceano que se derrama...
— Se eu fizer assim, não destruo o clímax?
Para criar, destruir é preciso.
— Mamalujo bateu a porta atrás de si.
Ponto final.
­— E o leitor?
O leitor que preencha as lacunas, ora.
— Não pode ser assim...
Deve. Ou você escreve para vender sabonete?
— Lá vem me acusar de publicitária...
E não é?
— Tá bom. Fora, clímax!
Agora, inscreva o conto.
— Tenho chance?
Não, mas tem um conto.
— Quero ganhar!
Então mantenha o título original, reponha o namoro imbecil, preserve o clímax e deixe aí, intocado, o tal desfecho.
— Acha que ganho?
Com esse texto de primeira mijada, sim.
— Você os subestima...
Eles merecem. Vamos beber?
— Vamos.

domingo, 24 de junho de 2012

EU, DEUS,


dei-te, criatura, a imortalidade, e não a juventude eterna.
Repugnante diante do espelho.  Por mais que se esforce, não vê traço algum de quando jovem.  Aliás, nem mesmo as fotos lhe trazem lembranças de outrora, mesmo com a sua memória prodigiosa: sempre refletem sua imagem atual, embora se veja, por instante, como antes.  Lembra-se de poses, inclusive nuas, para Alberto Henschel.  Lembra-se até da partida de seu pai, na manhã de 12 de março de 1823, para Estanhado, acompanhando emissário do Capitão Luís Rodrigues Chaves, conduzindo carta ao João da Costa Alecrim, que, por conta do ali narrado, aderiu ao confronto, em Campo Maior, com as tropas portuguesas.
Pobre criatura, a quem dei a vida.  Os males e dores da velhice lhe acompanham.  Mas todos a vêm jovem e bonita.  As fotos que atribui ao Alberto Henschel, por exemplo, na mão de todos, não passam de instantâneos de polaroides. Uns 30 anos, se muito, lhe dão.
E, no entanto, para que lhe serve a imortalidade, se não preservada a juventude? O mundo à sua volta, irreal, não ameniza o seu sofrimento, mesmo que os sorrisos que lhe são dirigidos não retratem repulsa ou compaixão por seu corpo esquálido e vincado. 
Sou senhor do seu destino. Dei-te vida e a ilusão aos que te rodeiam. Um dia, quem sabe?, não te mato, embora tal desfecho seja improvável.

Para Bezerra JP



domingo, 17 de junho de 2012

ENTREVISTA


O Senhor tem um minuto pra dizer a razão pela qual quer ser mais uma vez reconduzido.

Ah, porque agora tenho que pagar a toxina botulínica da patroa. Sem falar que quero continuar bebendo o scotch 18 anos, a libar um autêntico bordeaux, engordar a conta bancária, upgradear o patrimônio, fazer minhas viagens e ajudar os amigos, porque, afinal de contas, vivemos numa sociedade pós-moderna, ou seja, solidária e fraterna, não é mesmo?

E quanto ao povo, não vai dizer nada?

Que polvo? Prefiro camarão ao alho e óleo.

Não me referi ao molusco. Falo do zé-povinho, nenhuma palavra pra ele? Isso não é um teste, estamos ao vivo, numa coletiva, o seu microfone está aberto.

Ah, claro (tentando disfarçar a surpresa, ao mesmo tempo em que ajeita o nó da gravata), como poderia esquecer o polvo, melhor dizendo, o povo...

Nesta altura, demonstrando visível desconforto, vira-se para trás (a câmara o acompanha) e localiza o assessor. E então, em linguagem labial, pergunta: o que é que eu digo?

O assessor, solícito, na mesma linguagem, dispara: diz aquela!

Qual?  Aquela que todos repetem?

Exatamente, aquela frase feita de todos conhecida. É imbatível.

Mas está tão desgastada. (Em verdade, ele queria dizer manjada).  Quero falar algo novo, original, impactante, republicano.

Não importa, ninguém vai lembrar mesmo. Nunca ouviu falar em memória curta? Vai soar como se fosse dita pela primeira vez. Bem contemporânea.

Recomposto, encarou a câmara mais próxima e, num tom pra lá de solene, disse:

Desconsiderem o que eu falei antes, pois, evidentemente, tudo não passou de uma brincadeira, pra relaxar. Podem ficar tranquilos. E isso não é promessa, é um compromisso registrado em cartório. Sei que ninguém aguenta mais ouvir falar em potencialidades. Por isso, agora é pra valer. Nossa hora chegou. Não medirei esforços. Vou lutar por mais investimentos pra nossa região e com isso gerar emprego e renda para a população mais carente.

Pano rápido.

segunda-feira, 11 de junho de 2012

SEXO E ROCK AND ROLL



Airton Sampaio e M. de Moura Filho farão, amanhã, no Clube dos Diários, sessão de autógrafo de Dei pra mal dizer: contos eróticos, como parte do evento Namorados e Solteiros, da banda Radiofônicos.



domingo, 10 de junho de 2012

NATALÍCIO

Depois da luz hiperofuscante, depois que alguém de branco o segura pelas pernas e o balança, de cabeça para baixo, e lhe dá tapinhas nas costas, depois que quase se esgoela de tanto chorar, ele, não tem dúvida, ele vê.

— Quem é a Senhora?
Bem-vindo ao Inferno.
— Por Deus, quem é a Senhora?
Por Deus, como vocês indagam...
— Isso... Que é isso em sua mão?
Vou jogar, agora, para cima.
— ?
Se der cara, você perde.
— E se der coroa?
Você não ganha.

Ergue-se, num supetão. Já sentado, resfolega. Sua em bicas, o coração na boca, o corpo trêmulo. À frente, na parede branca, O Grito, de Munch, instantâneo preciso do que passara? Por Deus, nem os urros horripilantes que dei não a acordou!

— E olha, Nat, olha que meu sono é luva de pelica, você sabe...

A moeda furada... A mão descarnada da Velha... A moeda furada na mão descarnada da Velha... O resto, ah nem que forcejasse o resto não vinha, o resto deslembrava, o resto era branco, o resto era leitoso como a pele da mulher que, a seu lado, dormitava com os anjos, nua e linda, a bunda para cima, monumental.     

sexta-feira, 11 de maio de 2012

LANÇAMENTO NA ADUFPI, EM 01/6, 20h. COMPAREÇA!

Imagem da capa de DEI PRA MAL DIZER: CONTOS ERÓTICOS, de J. L. Rocha do Nascimento, Airton Sampaio e M. de Moura Filho, com programação gráfica e ilustrações de Antônio Amaral.

domingo, 29 de abril de 2012

CÉLULA MATER

               
O pai vive de agiotagem que, dizem aqui, é um ilícito penal, muito embora ainda esteja por nascer aquele que, desse lado ocidental e cristão, será condenado por crime de usura. Os pequenos funcionários públicos são a clientela preferencial. O barnabé nunca amortiza a dívida, pois quase sempre é convencido a pagar somente os juros extorsivos. O capital de giro, não deposita em banco, guarda-o num cofre, cujo segredo é guardado a sete chaves. Não faz supermercado, vai à feira do bairro, onde compra somente o que pode consumir no dia a dia, para não estragar, justifica. Certa vez, para diminuir as despesas, tentou vender um dos netos, órfão de pai e mãe, mas, como a oferta não foi do tipo irrecusável, desistiu. Temente a Deus, por suas obras, arrependeu-se do gesto. Ainda assim, se penitencia. Com uma inabalável estoicidade, diariamente, ora pelo retorno do neto que, ao saber de sua intenção, tomou destino ignorado e hoje vive no desterro. Casado há mais de 40 anos. Há vinte dorme na casa da amante, mas faz questão de tomar o café da manhã em família, a quem dedica integralmente o final de semana, quando então, marido e mulher dormem no mesmo quarto, ela na cama, ele na rede. Dos 11 filhos, as mulheres são a maioria. Casadas, separadas, amasiadas, uma delas indisposta. Netos a perder de vista, que, em vão, lhe esvaziam os bolsos à procura de um níquel, porque as filhas, ainda hoje, se aninham com a numerosa prole na casa do patriarca. A mãe costuma dizer que carrega uma cruz, o filho caçula. Alcoólatra, esquizofrênico e viciado em anfetaminas. A cunhada, eterna solteirona, testemunha cotidiana daquela avareza, além de ressentida por razões que nunca publicou, sempre pergunta pra que é que ele forma tanto patrimônio, ajunta tanto dinheiro, se não gasta, e nada disso vai levar pra debaixo do chão. Pros filhos brigarem entre si, quando ele morrer, diz a esposa resignada com a sorte. A cruz, nos raros momentos de sobriedade, alardeia: na hora em que ele fechar os olhos, a primeira coisa que eu vou fazer é arrombar aquele cofre e botar o dinheiro todo na goela!





 

segunda-feira, 2 de abril de 2012

RISCA DE GIZ

Fiz aquilo que pediu noutro dia, não quer ver (de perto) como ficou?
Tosa total?
Quase.
Ficou só a risca de giz.
Não vejo a hora de mostrá-la...




domingo, 25 de março de 2012

LAÇOS DE SANGUE

Maria da Fé, CID10F31 > Maria da Fé Filha, CID10F31 > Maria da Fé Neta, CID10F31, não teve filhos ela, linda qual uma utopia, ela, a mais bela das desdenhosas, ela, capricorniana da gema, não transmitiu ela, resoluta, a nenhuma criatura o legado da nossa miséria...