quinta-feira, 29 de maio de 2008

BOLA AO CESTO

Antes de entrar, ajustou o nó da gravata de seda italiana de fios trançados, garantindo que a ponta ombreasse com o cinto de couro de jacaré. Repassou, ainda, um a um, os argumentos.

Não se iluda, disse, após a leitura. Uma armação de titânio acomodava um par de lentes de correção que, de tão grandes, ajudavam a esconder a murchidão da pele. Viu-se refletido, as mandíbulas mais alongadas, as mãos maiores que os braços. Uma gota de suor aumentava de tamanho à medida que descia lentamente pelas têmporas. Ali decidem ao sabor do vento, arrematou, com ar de enfado - o que lhe acentuou as rugas na testa seborrenta –, e demonstrando, ele próprio, sua descrença. Não se apiedou do olhar incrédulo em sua direção nem percebeu que àquela altura o corpo, sentado à frente, suava frio, manchando o colarinho da dudalina de fios de algodão egípcio, tom lilás. Tinha a alma congelada, o velho. Isso não o impediu de esboçar, com desdém, um sorriso maroto ao ver a mão desesperada que tentava inutilmente afrouxar o nó da gravata de seda italiana de fios trançados.

Lívido, saiu dali com uma tristeza inconsolável, o nó da gravata de seda italiana de fios trançados fora de ordem.

De volta ao escritório, pediu à secretária que cancelasse a agenda do dia.

Fechado no gabinete e já livre da gravata de seda italiana de fios trançados, pelo telefone falou com três interlocutores diferentes. Depois, pousou o olhar ainda pálido sobre a placa em mármore botticino e vidro temperado bronze, que reproduzia alguns trechos do Oração aos Moços. Um Old Parr ao alcance da mão, para desfibrar o desconsolo. Com a outra, pausadamente, mas com rigidez, dobrou as sete laudas esgrimidas no papel timbrado, A4, letra em Time New Roman, fonte 12, alguns itálicos. E ainda que lhe doesse no mais profundo do ser, seguiu amassando-as, embolando-as, destruindo-as, até que alcançaram a forma de uma bola de papel do tamanho de um maracujá de feira, grande e murcho. Continuou por alguns segundos, como se fizesse um exercício de fisioterapia. Em seguida, com as duas mãos, a esquerda como apoio, ergueu a bola de papel, que agora parecia de chumbo, ao mesmo tempo em que enchia o pulmão de ar, prendendo, ao final, a respiração. Segundos após, soltou-a e arremessou os fatos e o pedido à cesta, de lixo. Tiro certeiro, como nos bons tempos dos jogos universitários.

sexta-feira, 23 de maio de 2008

DOBAL

Verões
Domingos
Tardes

Verões
Domingos de verão
Tardes de domingo de verão

Sejamos, agora, generosos.

O Poeta, que a vida inteira se nos doou, precisava descansar...

sexta-feira, 16 de maio de 2008

A HERANÇA DE CADA UM

Eles, aos berros, agrediam-se. Gérson, o caçula, sangrava já. A mãe, antes buscando apartar os filhos, agora retinha-se no sofá, mirando um ponto qualquer no céu, pela varanda, como se estivesse sozinha. Os dois, pensava mais uma vez, nunca se uniriam. Afinal, Lucídio, pai de Lucas, e Geraldo, pai de Gérson, foram inimigos até a morte.
A mãe levantou-se e dirigiu-se à varanda. Olhou o céu, e, como se o desprezasse, buscou a terra.
Os filhos, ainda hoje, agridem-se por qualquer bobagem. A mãe não esboça qualquer gesto para separá-los, presa à cadeira de rodas e ao passado. Ontem, porém, Lucídio visitou-a à noite, enquanto dormia, com a marca de corda no pescoço, prometendo retornar. As mãos tremeram e o rosto contraiu-se ao lembrar que ele a chamara de assassina.
Precisava encontrar um meio de afastar pelo menos o fantasma.

sexta-feira, 9 de maio de 2008

VIAGEM EM TORNO DO SOL

a socorro santos

“Licença, moça...”
Toda, senhor.
“Este o ônibus circular?”
Sim, este.
“Ufa, que lua.”
Quente, mesmo.
“Demais, o calor.”
Sim, que sol.
“Um braseiro.”
Uma sauna.
“Ufa, arre.”
O calor.
“Bê-erre-o-bró, isso.”
Quente.
“Minha mão...”
Suada.
“O inferno, aqui.”
O sol.
“Tórrida, a cidade.”
Um forno.
“E que forno.”
Sua mão...
“Suada.”
O calor.
“O sol.”
Só sol, o céu.
“Demais, no céu, o sol.”
Que sol.
“Céu-sol, este.”
Vou descer.
“Tudo bem.”
Ótima conversa, senhor.
“Legal também, moça, a sua.”
Até.
“Até.”
Este o ônibus circular?
Sim, este.
Licença, moço...