domingo, 25 de dezembro de 2011

CONTOZINHO DE NATAL


A menina, sentada em seu regaço, foi ao solo.  O corpo, depois de arremessado para trás, imóvel. Um vermelho mais intenso do que o de sua roupa escorria, ainda aos borbotões, de seu peito.  A barba e os cabelos brancos e longos desprenderam-se do bom velhinho, e a menina, ainda no piso, descobriu que Papai Noel não existia.


segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

O TRIELO

BLONDIE
DE ONDE VEM
Um ponto no infinito. É o que a objetiva capta quando a cortina se abre. Quando avança lentamente uma imagem trêmula surge no canto. Sob um sol causticante. Um só corpo é o que parece ser. Quando se fecha aí se vê. Não é o que se pode chamar exatamente de marcha lenta. Movem-se por inércia. Não são as patas que removem os grãos é que as impulsionam. Os joelhos já não dobram mais.
PARA ONDE VAI
Eles avançam. No desfiladeiro se deixam arrastar sob o olhar atento de um caramujo do deserto que enterra a cabeça na areia aos primeiros gritos do coiote. Tão descarnados. Tão sedentos. Difícil dizer quem é homem quem é montaria.
QUAL O SEU NOME
Desviada para o lado esquerdo a cabeça baixa pela força gravitacional abandonou o movimento do pêndulo. O chapéu mais ainda. Não impedem que o sol siga abrindo crateras. O charuto no canto da boca o barulho do vento na noite passada apagou.
NINGUÉM JAMAIS SOUBE
Ainda assim ele segue. As rédeas seguram a mão esquerda. Mas não se engane quem vê a outra dormindo sobre o coldre. Está atenta. E formigando.
Vamos. Faça o meu dia.
TUCO
A natureza não foi generosa. Mas a ele deu ouvidos atentos que, à distância, ajudavam-no a distinguir os diferentes sibilos da serpente. Com os olhos, sempre piscando e girando de um lado a outro, à frente, movimentava-se em silêncio. Fez-se intimo do calor do deserto, provou do veneno do escorpião, e sobreviveu. A dignidade, esta se foi cedo. Do pai, nunca soube. Da mãe, não se recorda do dia em que a viu sóbria. Mas nada disso importa agora. A vida cuidou de fechar-lhe o coração, deixando-o duro como uma rocha. Não fosse pelo ar de desamparo que, quando descuidado, denunciava o sofrimento e a amargura, não seria arriscado dizer que nunca perdia o bom humor. Alguma dor que não tivesse experimentado? Não. Por isso, viver com a corda no pescoço fazia parte do jogo, mesmo quando não havia um anjo louro à retaguarda.
OLHOS DE ANJO 
Quando cavalgava, mantinha curtas as rédeas e tesos o pescoço e a cabeça do Puro Sangue, o que conferia mais elegância ao trote. Uma raposa, cujos olhos miúdos brilhavam com o tirilintar de moedas de ouro. O chapéu, não exatamente negro, escondia a calvície avançada. O cachimbo, quando preso a um dos cantos da boca, tinha outras utilidades. Assim como para suas reflexões, usava-o também para destilar o veneno que expelia com um olhar contido. Botas e esporas lhe proporcionavam um caminhar firme e pausado. A mão direita, sempre próxima ao coldre invertido e do lado oposto, chamava atenção pelo dedo médio, cuja falange fora decepada com um punhal pelo próprio pai quando ele ainda era uma criança inocente. Não agia por ódio ou ressentimentos. Pragmático. Matar era apenas um negócio, o que não impedia de exercer o ofício com rigor excessivo e sangue-frio. Por isso a frieza no olhar, a impressão de que quase não respirava, a crueldade sem limites. Mas, sejamos justos: ninguém podia acusar-lhe de que não cumpria sua parte nos tratos, mesmo que para isso tivesse que se portar como agente duplo.





domingo, 13 de novembro de 2011

FALANDO COM ELA

Quando entro, seus olhos estão voltados para o teto. Não é azul. É branco-neve. O que ela vê? Nuvens sobre um céu azul!
Aproximo-me. Digo oi. Desvia olhar, assustada. Olha-me fixamente. Não pisca. Por alguns segundos, deixo que aqueles olhinhos miúdos penetrem minha alma. Espero uma reação, uma palavra. Percebo o esforço pra me reconhecer. Mas, somente me olha. Não há brilho nos olhos, cujo olhar é opaco, vago, perdido em algum lugar longe dali, muito longe.  Em que mundo vive agora? O corpo guardado embaixo de lençóis. São muitos os lençóis. Escondem a fragilidade e toda uma vida de entrega e dedicação. Quase que já não existe corpo debaixo dos lençóis. Quase não existe mais vida.
Depois de muito me olhar, com um esforço supremo, balbucia alguma coisa. Aproximo-me mais.

É a minha rosa? (Sempre me chamou assim. Diz que sou o filho mais bonito do mundo).
Tento me segurar.
Pergunto como ela está.
Responde que está viva
Digo que bom que a senhora está viva.

Ela volta a fixar os olhos no teto branco e frio.
Uma lágrima escorrega pelo canto do olho, que a mão trêmula tenta enxugar.
O braço direito começa a tremer.
Pergunto se sente frio. Com dificuldade, balança com a cabeça e sussurra baixinho. Pelo movimento dos lábios percebo que diz que sim.
Mas não está tão frio assim, penso.
Fico preocupado e chamo a enfermeira que verifica a pressão, o batimento cardíaco, os sinais vitais.
Tá tudo bem, deve ser a emoção.

Eu olho pra ele, os olhos parecem nadar. Mas não diz palavra. Com o auxílio da bengala, ensaia se levantar da cadeira e se aproximar, eu peço que ele fique sentado, não se levante.

Quando a enfermeira sai, eu me aproximo novamente.
Quem é você?
Seu filho, a rosa mais bonita do seu jardim.
E os velhinhos?
Que velhinhos?
Eles já comeram?
Sim, já estão alimentados.

Começo a acariciar seus cabelos e brinco. Digo que estão muito brancos, parecem novelos de algodão e que precisa pintá-los.
É verdade, ela diz. Em seguida, ensaia um sorriso que, de repente, interrompe.
Gosta de cafuné?
Gosto, mas me fale a verdade, os velhinhos já morreram?
Que velhinhos?
Aqueles velhinhos. Eu prometi a eles que não morreriam. Não antes de...
Não morrerão, tranqüilizo.

Ela volta o olhar pro teto cinza-escuro.
As nuvens estão carregadas, vai chover hoje!
Ele sofre calado. Será que é de arrependimento?


quinta-feira, 3 de novembro de 2011

46

Quando Ismália Palácio das Dores batizaram,
Hitler invade a Polônia.

Quando, já no Colégio das Irmãs, ouve o badalar repentino dos sinos da São Benedito
não sabe como sabia que casas se estavam queimando na cidade como
se Therezina a Roma de Nero, diz irmã Natália.

Quando Ismália sangrou, e espantou-se,
Ghiggia, Schiaffino e Obdúlio Varela lacrimejam os olhos do Brasil.

Quando ela, também primeira vez, enamora-se,
e ouve afaste-se desse sujeitinho sem eira nem beira,
Getúlio matara Vargas.

Quando nas aulas de português descochilou
é que Irmã Natália fala coisas como a vida é solecismo, na verdade é um anacoluto, a vida.

Quando a casam, e então Ismália Palácio das Dores Guimarães,
os russos arremessam o Sputnik.

Quando a filha veio, e sentiu, em igual dose, euforia e remorso,
Garrincha macunaíma na Suécia.

Quando, falecidos os pais, ela divorcia, e então Ismália Palácio das Dores,
jamais esqueceu que de um rádio vinha Peguei o trem em Teresina
Pra São Luís do Maranhão
Atravessei o Parnaíba
Ai, ai, que dor no coração...

Quando, noite já um tanto desestrelada, nela cessou de vez o antipático sangue,
O povo marcha Um,
dois, três, quatro, cinco mil,
queremos eleger o presidente do Brasil!

Quando Odara, do Natal na véspera, o tamborete sob os pés chuta, e língua de fora fica, e roxo o rosto rui, então Ismália Palácio das Dore
Ismália Palácio das Dor
Ismália Palácio das Do
Ismália Palácio das
Ismália Palácio da
Ismália Palácio d
Ismália Palácio
Ismália Paláci
Ismália Palác
Ismália Palá
Ismália Pal
Ismália Pa
Ismália P
Ismália
Ismáli
Ismá
Ism
Is
I

terça-feira, 18 de outubro de 2011

AULA MAGNA

Boa noite!
Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis, Machado de Assis.
Boa noite!

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

MINHA TIA E O PÃO DE AÇÚCAR DE ALGODÃO-DOCE*


Era só um retrato na parede. Olhei rapidamente, antes de sair. Foi o bastante. A primeira vez que entrei num cinema fui levado pelas suas mãos. Mas essa história eu conto depois. Do que eu quero mesmo falar agora é de como, graças a ela, o Pão de açúcar entrou na minha vida. Lembro-me como se fosse hoje. Ela tinha acabado de chegar do Rio de Janeiro, capital do Estado da Guanabara, fazia questão de acrescentar. Ainda pensava em se casar. Julgo pelas fotografias de biquíni, na praia de Copacabana. Muito bonita. Avaliando pelas fotos, nada indicava que tempos depois seria vítima de um mal que a marcaria por toda a vida.

Esteve no Rio a convite de um primo, estudante de medicina. Primeira vez numa praia. Não foi sozinha, teve a companhia da irmã do primo, que se não fosse assim nossa avó não permitiria. Retornou falando em bossa-nova, garota de Ipanema e de um rapaz cheio de espinhas no nariz cantando desafinado. Colocou um disco na vitrola pra eu ouvir. Não entendi nada. Também, naquele tempo, no meu universo só havia lugar para as jovens tardes de domingo. Mas o que mais me chamou atenção, além das fotografias, foi o fato de ela falar para mim que tinha andado de bondinho no Pão de açúcar. Quando falou em pão de açúcar, eu juro, me deu água na boca. Pensei logo. Deve ser uma montanha de algodão doce. Do jeito que falava parecia ser um lugar, só que eu não conseguia compreender alguém andando de bonde num pão de açúcar. Tinha vergonha de perguntar se o pão de açúcar era feito mesmo de açúcar. Temor reverencial. Ainda pequeno vim para a capital, eu e minha irmã mais velha. Morávamos na casa de nossa avó materna, então já viúva, e com duas tias, filhas suas, uma delas veio a se casar.

Nunca cheguei a fazer aquela pergunta à minha tia. De tanto matutar, descobri que só tinha um jeito de saber. Aguardar o moço que vendia algodão-doce. Ele sempre passava na nossa rua. Era só esperar até o próximo fim de semana.

Foi num sábado, à noite. Naquele dia eu tinha um motivo a mais para comprar algodão-doce. Quando o homem chegou com o carrinho, se dirigiu até ao canto da praça, no local de sempre, ali debaixo daquela algarobeira que hoje não existe mais. Logo em seguida, acendeu o lampião e começou a anunciar em voz alta: “Olha o algodão doce!” Mais alto do que ele eu só me lembro do amolador de tesoura quando passava de porta em porta. Corremos numa algazarra só, os meninos. Quando chegamos, não tomei a dianteira de ninguém, nem mesmo dos menores que eu. Não tive pressa, fiquei por último. Para melhor apreciá-lo fazendo algodão-doce. Rodava aquela manivela, de onde saía um ruído surdo e arrastado. Jamais esqueci aquela geringonça girando, o lampião aceso, as mariposas em volta, os mais velhos dando cocorotes nos pivetes. “Não cheguem mais perto, que é quente”, costumava avisar. A maior expectativa era a de ver os primeiros fios de algodão surgindo, de tão branquinhos me lembravam a cabeça do meu finado avô. O cordão engrossava pouco a pouco, se avolumava até não caber mais, quando então ele parava, mandava fazer fila e, à medida que ia recebendo o dinheiro, enrolava a bola de algodão-doce num pedaço de papel de embrulho. Enquanto não chegava minha vez, fiquei imaginando como seria possível com um carrinho daquele, e somente com a força do braço, fazer uma montanha de algodão-doce. Quero dois, disse eu, quando chegou a minha vez, já salivando somente de imaginar a primeira bola desmanchando na boca. E enquanto ele enrolava o meu, criei coragem para fazer a pergunta. Respirei fundo. “Moço, é verdade que lá no Rio de Janeiro tem uma montanha de algodão-doce?” “Quem te disse isso?” “Minha tia, só que não com essas palavras, quer dizer, ela disse que tem um pão de açúcar e que passeou de bonde nele.” Ele apenas riu, enquanto meneava a cabeça.

Saí dali imediatamente, envergonhado. Se arrependimento matasse... Ainda bem não havia mais nem um só menino maior do que eu por perto. Mangação na certa. Depois daquele dia nunca mais comprei algodão-doce diretamente das mãos do moço. Não que eu tivesse ficado com raiva, era vergonha mesmo. Quando ele chegava, eu pedia a minha irmã pra comprar. Só se tu me der um pedaço, dizia ela. Fazer o quê, tinha que concordar. Tempos depois, ele deixou de passar na rua. Acho que coincidiu com a chegada do parque de diversão na praça. Tinha sempre alguém vendendo algodão-doce e o bom era que era colorido, você podia escolher a cor. Mas não tinha muita graça não. A gente não podia chegar perto, não via o algodão sendo feito, não saía quentinho, não havia mariposas atraídas pela luz do lampião, nem manivela, muito menos o ruído da engrenagem, enfim não tinha aquela mesma magia. E coitados dos meninos de menor tope que não tinham dinheiro pra comprar! Pra eles não tinha jeito mesmo. É que, no tempo do carrinho, depois do moço atender os grandes, os traquinas vinham por trás, sorrateiramente, à cata das sobras. Recolhiam com o dedo os miúdos torrões de açúcar e depois levavam à boca. E ao menor sinal de que eram flagrados se punham a correr, lambendo os dedos e os beiços.

Alguns anos mais tarde, na aula de Geografia Humana, afinal compreendi o que era o tal do Pão de açúcar que minha tia tanto falava. Foi quando o vi na gravura de um livro, assim como o bondinho suspenso no ar por um cabo de aço. Não me contive. Eu me ri. A professora me repreendeu, pedindo que eu prestasse atenção. Hoje, passados tantos anos, às vezes ainda me ponho a pensar por que diabos eu cheguei a imaginar aquilo tudo. Será que pela cabeça dos outros meninos deu-se a mesma fantasia? Será que algum deles ficou com água na boca? Será que fizeram a mesma pergunta para o homem do algodão-doce?

Minha tia nunca mais retornou ao Rio de Janeiro. Continua solteira, ficou mesmo pra titia, como se costuma dizer. O primo? Formou-se em medicina e casou-se com uma colega da faculdade, com quem teve vários filhos. Por esse tempo, ela adoeceu. Até hoje não tem a percepção de que o Estado da Guanabara não existe mais. Quase não saí do quarto e, quando o faz, é para passear de bonde no Pão de açúcar. Ou então para ouvir “Só tinha que ser com você”, num bar de Ipanema. Na parede, outras fotografias, além daquela que mexeu com as ruínas do tempo. É onde guarda a memória de seus vinte anos. Abraçada com o primo, então quintanista de medicina. É quando imagino que aquele passeio ao Rio de Janeiro foi mais, bem mais que um simples veraneio.

quinta-feira, 7 de julho de 2011

HELENA




Ao contista J. L. Rocha do Nascimento



"Não é por que sei que ela não virá que não vejo a porta já se abrindo"

Meu mundo ficaria completo (com você), por Nando Reis

A princípio, bêbado, o peso do mundo sobre sua cabeça, enquanto na cama, o torpor, e a evocação de Helena. Chamou-a até dormir. E teve a impressão de que ela viera, em sonho. Linda, estava como da última vez que a vira. Pareceu-lhe que reatada a linha do tempo, abruptamente interrompida com o sumiço de Helena. Ou tudo teria sido realidade? Sentia o sabor do batom que Helena costumava usar. O costado da mão convenceu-lhe do sonho.
Então, no dia seguinte, um amigo deu-lhe notícia de Helena. Estava na cidade, para casar com um colombiano de nome Pablo. Disfarçou o desapontamento, dizendo que agora ela cantaria boleros em espanhol impecável. O jornal, atirado pelo amigo, foi duro golpe. Ali estava ela, feliz. Foi para casa, e ouviu La Puerta repetidamente, ignorando brados de vizinhos, impassível, absorto na imagem daqueles olhos felizes e amendoados. E naquele dia não dormiu propositadamente, para sonhar com Helena, que esteve presente com ele a noite toda, revirando a cama e queimando lençóis, e, ao sol parir, aflautando canções de Chico, como costumeiramente fazia nas manhãs, depois de noites báquicas.
Então, escreveu: “Não dormi. Helena também não.”
Não procurou Helena. Nada, nada mesmo, tinha a lhe falar. Disse a si mesmo: estava morta. Evitou os jornais por uns dias. Debruçou-se sobre o projeto pendente, por horas a fio, todos os dias, varando a noite frente ao Autocad. E a vida seguiu seu curso, com mudanças de estações e com Maria, Rosângela, Eliza, Ana, Alice, Sônia, Edna, Lindalva, Carol, Sueli, Jaqueline, Luciana, Luíza, Teresa, Marta e...
Bêbado, em uma noite, lembrou-se de Helena. Evocou-a até adormecer. E Helena veio. Com ela, a chuva. Viram-na lavar a janela, e desenharam desejos no frio do vidro. Da varanda, viram, enublado, o rio, e dele não exalava a fedorentina de sempre. A cidade acordava quando ela foi embora. Viu sua imagem desfazer-se no canto do quarto, com a certeza de que sonhara. Depois, adormeceu com o cheiro de sexo emanando de seu corpo. Acordou pelos toques do telefone. Tarcísio, excitado, perguntou-lhe se já tinha visto o jornal. Não, respondeu. Então, soube que Helena estava na cidade, com o marido e a filha, Maria. Agradeceu ao amigo. Sonolento, mas praguejando por ter sido acordado para uma notícia que já sabia, pegou os jornais. Todos anunciavam a estadia de Helena na cidade. A mãe, doente, interrompera a administração da família em próspero comércio. Brincou com a situação. Disse que lamentava não ter sido poeta romântico, e morrer, depois de contrair a mycobacterium tuberculosis, apaixonado.



sábado, 21 de maio de 2011

...JESUS

chorou*...


________________________________________________________
*Ver restante da minha narrativa em Lucas, Evangelho de.

sexta-feira, 11 de março de 2011

OLHOS DE ANJO OLHOS DE ANJO

Quando cavalgava, mantinha curtas as rédeas e tesos a cabeça e o pescoço do Puro Sangue, o que conferia mais elegância ao trote. Uma raposa, cujos olhos miúdos brilhavam com o tirilintar de moedas de ouro. O chapéu, não exatamente negro, escondia a calvície avançada. O cachimbo, quando preso a um dos cantos da boca, tinha outras utilidades. Assim como para suas reflexões, usava-o também para destilar o veneno que expelia com um olhar contido. Botas e esporas lhe proporcionavam um caminhar firme e pausado. A mão direita, sempre próxima ao coldre invertido e do lado oposto, chamava atenção pelo dedo médio, cuja falange fora decepada com um punhal pelo próprio pai quando ele ainda era uma criança inocente. Não agia por ódio ou ressentimentos. Pragmático. Matar era apenas um negócio, o que não impedia de exercer o ofício com rigor excessivo e sangue-frio. Por isso a frieza no olhar, a impressão de que quase não respirava, a crueldade sem limites. Mas, sejamos justos: ninguém podia acusar-lhe de que não cumpria sua parte, mesmo que para isso tivesse que agir como agente duplo.

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

O HOMEM DA SEGUNDA - FEIRA


Conto rabiscado na praia do Farol da Barra, Salvador,Bahia.

Cornélio Carnaval augurava relações e segredos. Os instantes pareciam ter o peso da experiência e hábitos de um comportamento austero.
Antes ele olhava Mariana Parente, os olhos atrevidos pela blusa vermelha.
- O que você imagina?
- Não devo revelar.
Aproximou-se dela, fez um carinho com o dedo na mexa loura que pendia da orelha. Mariana Parente sorria com os olhos como se esperasse outro lance.
Ela sorriu com hálito de dentefrício e por um triz não insi­nuou a cor de sua langerie sob a saia estampada de azul e preto.
Cornélio Carnaval, de gestos sutis, procurava deixá-la solícita e de olhos evidentemente alegres.
Mariana Parente lembrava "uma cavalgada ávida e silenciosa no meio da noite". "Minha loura, gostei", ela pensava de foro contumaz.
Cornélio Carnaval insinuou num súbito sorriso "você gostou, meu bem?”. "Não posso dizer", Mariana Parente asseverou.
"Você gostou mesmo do meu umbiguinho, meu bem?
"Você notou que eu fungava quando acariciava.
"Não quero lembrar, disse Mariana aununcíando sor­riso.
Cornélio Carnaval avidamente colhia os instantes medindo as palavras, os olhos, o silencio. Ela parecia gestualizar-se en­tre o quero mais ou o solícito talvez.
Cornélio Carnaval pensava sutilmente no que Mariana Parente pudesse insinuar ou revelar.
Ele lembrava que ela se mostrava sensível a carinhos no pesco­ço. Ele ria de olhar querendo puxar as lembranças. Mariana Parente mexia intencionalmente com as pernas em movimentos aparentemente compulsivos.
"Não me olhe assim, não quero que veja.
"Sigo seu olhar, brilho e ansiedade, disse ele.
"Você acha mesmo?
Mariana Parente ergueu-se da cadeira como se o "arrastasse” de­liberadamente com os olhos.
Ela ergueu metade da blusa vermelha.
"Não vai me seguir?
"Evidentemente, que sim, meu bem.
Mariana Parente deixava se levar pelo instante, "nos fatigávamos e ele me chamava de minha loura", ela pensou, entre ávida e compungida.
Diante dele Mariana Parente insinuava livre e nem um rastro de" interdição. "Desse geito que ficamos acho que podemos. Mereço mesmo o que se passa conosco. Ele assentiu discreto. Os olhares amantes revelavam entre o desejo, a ansiedade e a discrição.
Olhe minha blusinha, não o estimula?
Apenas você, meu bem, disse Cornélio Carnaval dividindo a atenção dela com o trãnsito na avenida Frei Serafim.
O relógio do carro me levava ao escritório, o trabalho, o métode o rigor. Mariana Parente me olhava sorrindo. No pescoço o fino cordão em ouro, o cisne branco.
À medida em que distância diminuia da íntima presença, Cornélio Carnaval subitamentce inseria no objetivo o sentido do trabalho.
- Mariana Parente o trabalho me chama.
-Conheço isso, meu bem, disse ela.
-Trabalho, trabalho, depois o pleisir, ma bien.
-Conheço a lógica trabalho e prémio, ela disso sorrindo.
Escritório, cálculo matemático, fichas de trabalho uma ordem aparente, e ao fixar-lhe os olhos, as pernas brancas, a langerie preta, Mariana Parente uma ordem sutil e aparente.
Diante de Cornélio Carnaval ela instante abria arregalado os olhos, como se dissesse "não faça isso” ou apenas fechava os olhos, o cisne branco, calma et plaisir.
Cornélio Carnaval diante do fremir fungoso “meu amor, mi amore.” Mariana Parente deixava-se encaixar na exata medida, dimen­são concreta e abrupta do prazer.
"O que você achou, ma bien? Perguntou ele.
"The love is beutiful, my darling, disse ela pastichando a voz.
Agora que a ciência sabe que a terra está parada e o mundo é azul, quero calma, repouso e uma boa dose de carinho, disse Mariana Parente espreguiçando-se entre lençóis.
Cornélio Carnaval apenas esboçou um gesto solícito como se expressasse “foi bom, ma beute, faça paz, não faça guerra”.
A tarde caía ao toque sutil da vaga expressão "luxe, calma et plaisir.
Mas o dia seguinte se anunciava com o traço da segunda-feira, evidentemente o trabalho, rigor e tambem prazer.
Bezerra JP – Escritor e Cientista

domingo, 13 de fevereiro de 2011

TUCO

A natureza não foi generosa. Mas a ele deu ouvidos atentos que, à distância, ajudavam-no a distinguir os diferentes sibilos da serpente. Com os olhos, sempre piscando e girando de um lado a outro, à frente, movimentava-se em silêncio. Fez-se intimo do calor do deserto, provou do veneno do escorpião, e sobreviveu. A dignidade, esta se foi cedo. Do pai, nunca soube. Da mãe, não se recorda do dia em que a viu sóbria. Mas nada disso importa agora. A vida cuidou de fechar-lhe o coração, deixando-o duro como uma rocha. Não fosse pelo ar de desamparo que, quando descuidado, denunciava o sofrimento e a amargura, não seria arriscado dizer que nunca perdia o bom humor. Alguma dor que não tivesse experimentado? Não. Por isso, viver com a corda no pescoço fazia parte do jogo, mesmo quando não havia um anjo louro à retaguarda.

segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

ETNA


Chegou em casa. Atirou-se no sofá. E disse eu estou acabada. Meus seios estão caídos. Claro que era delírio. Seus seios estão mais rijos que o monte Fuji, disse-lhe, enquanto os tocava. Preciso fazer uma plástica. Conversa! Afastei a blusa e sorvi o gelo do cume, em uma temperatura que parecia o Etna.

domingo, 16 de janeiro de 2011

A OUTRA

Não havia córrego de águas claras. Um esgoto de águas servidas, a céu aberto, era o que tinha. Desembocava numa galeria, centenas de metros depois. Ali também se despejavam os dejetos do pavilhão; noutro bueiro, os resíduos da fábrica de sabão. Era, assim, cortada ao meio por uma galeria não concluída. Aliás, dizer que se tratava de galeria não é exato: uma aluvião de águas sujas e fedidas. Necessitava-se fôlego de sete gatos para atravessar para o outro lado, tanta a podridão.

Dividia-se entre dois quarteirões (a palavra quadras não corria, àquela época), que também demarcavam territórios, separando os meninos em duas turmas, os da parte de baixo e os da parte de cima. Nas casas dos da parte de cima tinha mosaico na sala, na copa e na cozinha; nos quartos, taco; picapes Ford ou Rural-Willis na garagem. Era de ladrilho o piso das casas dos pais dos meninos da parte de baixo. Carro na garagem só o Jeep do Seu Viriato, que nem dele era, mas do governo, e o Fenemê do Seu Salvador, que usava para fazer carregamento de areia. Filó, o motorista. O momento certo era quando ele engatava a segunda e da segunda não saía, que era subida. Quando passava em frente à casa do Zezinho, a gente se dependurava na traseira da carroceria. Antes de dobrar a esquina, pulávamos fora.

Na divisa entre os dois quarteirões, bem na esquina, do lado esquerdo de quem sobe, morava um menino, o Cabeludo. Ele também se dividia entre os de cima e os de baixo. Sua relação com a parte de baixo era porque era meu primo, ainda que distante, e também porque ali morava Milinda, os quadris mais bonitos que já vi. Mas esses não eram os únicos motivos, logo descobri. Descer para comer sirigoela madura no pé da casa de dona Albina era outro. Uma senhora gorda e generosa, ela. Toda vez que os filhos, os gêmeos Antonio e José, se envolviam numa briga, sua barriga começava a inchar, conforme dizia, enquanto batia com as mãos num dos lados, chamando a atenção dos vizinhos. O Cabeludo, assim como tantos, eu incluído, também descia para curiar a Bárbara (morena de pele azeitada, já coroa, que morava sozinha) no banheiro feito de talo de babaçu que ficava no fundo do quintal da casa, sempre às seis da tarde. Desconfiávamos, só pelo jeito de se ensaboar, que ela sabia que fazíamos fila para vê-la. Parecia sentir um prazer sem limites. Outro divertimento era olhar pelo buraco da parede sem muro e ver a irmã do Zezinho se trocando, os peitos já grandes, as carnes firmes, o sexo com os pendões enrolados. Mas não era de graça não, pagávamos ao Zezinho. Não em dinheiro, que a gente não tinha, mas em outras moedas, como time de botão, carteiras de cigarros vazias, castanhas, carrinhos de rolimãs e petecas.

Ainda sobre o Cabeludo. Quando a briga era pra valer, ele ficava do lado dos meninos da parte de cima; quando não, não se envolvia, com medo de pegar cocorote de ambos os lados. Nós, da parte de baixo, tínhamos um grupo musical e um time de futebol. As traves eram formadas com duas bandas de tijolo. Não havia problema de grama, pois o capim comia solto. Jogávamos com os pés descalços. Ao final do jogo, nossa diversão era esperar Seu Benezin, vigia do Colégio, de volta a casa, ao entardecer. Tinha uma bicicleta novinha em folha, com paralamas nos pneus, uma flâmula do Fogão tremulando no guidão. Mesmo assim, ao se deparar com uma poça d’água enlameada no meio do caminho, ele freava, desmontava e, firme com os braços, suspendia a bichinha até atravessar a poça, tudo para não sujar os pneus da Gulliver. A gente se ria, de forma tímida e silenciosa, que ele era zangado, capaz de nos ameaçar com o facão Colinos, sempre atravessado na cintura.

O líder da banda musical era o Fontoura, a quem a gente chamava carinhosamente de Xarope, filho de Seu Canuto com dona Teresinha, que diziam ser macumbeira. Se verdade ou não, nunca se soube. Mas uma coisa é certa: raramente tomava banho, tinha os cabelos sempre emaranhados, usava um cachimbo atravessado na boca e deixava o ar carregado. Sentíamos um temor reverencial, medo de virar sapo. Sua casa estava sempre às escuras. E havia um quarto cuja porta se mantinha o tempo todo fechada e de onde escapava um gemido, nas primeiras horas da noite, que diziam ser da irmã do Fontoura, que se perdeu na vida e, como castigo, os pais a condenaram a viver trancada. Nenhum menino chegou a vê-la. Fontoura era o vocalista e também tocava bateria, único instrumento da banda, feita de latas de querosene vazias que a gente pegava na Usina. O repertório se dividia entre jovem guarda e música de cabaré, que não conhecíamos nem ouvíamos outro tipo.

Jacó era o craque do time e escalava os outros pra jogar. Lindomar, o mais molenga de todos, sempre ficava no gol, a menos que fosse o dono da bola. Suas orelhas viviam sempre vermelhas, de tanta caçoleta. Jacó dormia com uma touca na cabeça, segredo que poucos sabiam. Era alisar os cabelos e fazer bonito nas festas nos finais de semana, lá para as bandas das Ilhotas. Eu não era bom de futebol nem sabia cantar. Mas tinha um primo rico, o Cabeludo, que às vezes descia com sua bola dente de leite, sem um remendo sequer. Mais de uma coisa eu me orgulhava: era o maior colecionador de revistas em quadrinhos, principalmente de faroeste e de Tarzan, que não gostava do Mandrake. E também tinha o melhor time de botão, cuidadosamente guardado num frasco usado de remédio. Para manter-lhes o brilho, conservava-os em talco Cashmere Bouquet, que pegava escondido na cômoda do quarto da mãe. Também tinha o Edu, que não sabia jogar futebol, não encostava perto das meninas, falava sempre com a mão na boca, nunca viu uma mulher nua, nem mesmo por um buraco na parede ou em fotografia de revista de mulher pelada, mas sabia desenhar muito bem. Foi com ele que aprendi desenhar o cavalo do Zorro.

Tinha a Lucinha, minha primeira namorada. Quando terminamos, prometi que um dia a gente reataria, quando eu estivesse mais crescido e usasse barba e bigode ou então quando ganhasse uma bicicleta, o que primeiro ocorresse. E não é que muito tempo depois ela veio cobrar-me o cumprimento da promessa e, para avivar minha memória, levou a Carminha, sua amiga, que a tudo testemunhara à época? Não pude cumprir a jura, por uma série de razões que não convém mencionar.

Chegou um dia que tivemos de mudar. Morávamos de favor em uma casa de minha avó materna. Quando ela precisou, tivemos que sair dali para uma bem menor e de paredes de taipa, na Vermelha. Na mudança, meu maior cuidado era com o baú de revistas em quadrinhos. O meu primo Cabeludo veio pessoalmente da parte de cima para ajudar, na esperança de ver a minha coleção completa de Korak, o filho de Tarzan. Mostrei só algumas, pois de todas era a que eu tinha mais ciúme. Aliás, todos os meninos da parte de baixo tratavam o meu baú como se um tesouro fosse, e realmente era, um tesouro de revistas em quadrinhos que somente eu, dos meninos de baixo, tinha. Os outros não gostavam de ler, preferiam a bola ou peteca (nunca me acostumei a chamar bola de gude).

Tempos depois, nova mudança, até que um dia meu pai, cansado de tanto pagar aluguel, conseguiu financiar a compra de uma pequena casa, num bairro da periferia. Nunca mais voltei àquela rua, que não existe mais, a não ser como uma lembrança viva na minha memória de menino. Depois que concluíram a galeria, passou o calçamento, mais depois o asfalto, as figueiras foram derrubadas, tornou-se ela um corredor de tráfego. Seu Benezin morreu. Do meu tempo, poucos ali ainda residem. A maioria das residências virou estabelecimentos comerciais ou clínicas médicas. Do meu primo Cabeludo nunca mais uma notícia, a não ser a de que ficou careca e se mudou para outro Estado. O Jacó, eu soube, foi vítima de um acidente de carro, perdeu massa encefálica e hoje anda como se fosse um zumbi e não tira mais a touca da cabeça. O Edu, que passou um tempo internado no Meduna, continua desenhando os mesmos heróis e ainda não realizou o seu maior sonho: descobrir a identidade secreta do Zorro. Um dia encontrei com ele no centro da cidade. Não me reconheceu. Imagino que até hoje ele ainda não viu as carnes de uma mulher tremerem. Quanto aos irmãos gêmeos, um deles se tornou jogador de futebol profissional, o outro é engenheiro mecânico. A minha primeira namorada nunca se casou. Ainda espera que eu cumpra a promessa. Dona Albina é umas das poucas que resistem no lugar, mas a barriga não incha mais.

Bem ali perto dela, no Barrocão, uma outra rua. Imortalizada na canção.