sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

CONTETO DE NATAL

--- Não vim aqui, Juliana, comer peru.
--- Acabou, José. Tou em outra.
--- Maior que a minha?
--- Melhor.
--- Por acaso o babaca suga o vinho espalhado aos poucos ao redor da sua xota?
--- Isso e muito mais.
--- Juliana, você me mata.
--- Ano novo, vida nova.
--- E eu, o deus de sempre?
--- Agora ele, o João. Adeus.
--- Juliana, eu...
--- Espera aí, cara, ela é sua ex-mulher, não?
--- Ex uma porra, seu...
Aí um corpo estendido, não mexam no presepinho ensanguentado, deixem essa árvore toda quebrada quieta, fotografem tudo, alguém por favor diga à merda desse vizinho para parar de repetir esse troço, Noite feliz,
Noite feliz,
Pobrezinho...

quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

EM ARANJUEZ COM MI AMOR

Ao som dos primeiros movimentos, lembro-me da fatídica viagem, de como e de quando lá chegamos. Um pequeno povoado. Deserto, poeirento e debaixo de um sol de cozinhar. Entramos. A taberna era rústica e suja. Mariachis dedilhavam suas guitarras ao fundo. Ao longe, um lamento forjado ao sopro de um trompete. Violinos orquestrados compunham, por fim, o cenário. O taberneiro suarento, sempre esfregando as mãos numa toalha encardida, nos serviu, em tigelas de barro, algo muito travoso para ser vinho. Ela não gostou. Nada que lembrasse as sessões homéricas de vinho tinto, uvas Itália e morangos silvestres. Ao lado, uma linha, uma velha estação, o vaivém barulhento de uma porta. A civilização já passou por aqui. É. Brincando, ela fez um longo enquadramento com as mãos. Tarantino ou Sérgio Leone? O original, eu disse.

Enquanto o trompete agoniza, entrecortado pelo dedilhar suave sobre a harpa, lembro também de como, aproveitando uma pequena trégua, tentei penetrar aqueles olhos, mas os cabelos, desalinhados pelo vento, debatiam-se por sobre o rosto, tirando-me a visão das amêndoas negras. Se os visse, se os penetrasse fundo, imaginei, talvez a demovesse da idéia, como naquele final de tarde em que, ao fim, embeberam-se uns nos outros, brilharam-se uns pros outros e juraram-se uns aos outros.

Queria uma última chance. Julgava que tinha me esforçado. Tanto que, no prelúdio, os dedos ainda se tocaram, embora sem a harmonia de antes. Mas logo percebi que seria impossível reproduzir o monólogo das mãos.

E nada foi mais doloroso do que o movimento final, anunciado pelas notas graves e marcadas do violoncelo. Quando, de repente, se ergueu e selou-me o rosto com um beijo. Meus olhos cerraram-se, repeliram qualquer movimento na tentativa de reabri-los. O receio era o de perceber o óbvio. E sumiu lentamente na poeira arrastada pelo vento - que também abria e fechava portas -, nas ondas tremulantes de calor. Ficou a sensação de uma miragem, nada além.

Nunca mais a vi. A não ser quando ouço concierto de aranjuez, como agora, na voz de Nana Mouskouri. Milles Davis que me perdoe com o seu adágio.

É noite de natal. Mais alguns instantes e os ponteiros estarão sobrepostos. O vizinho do lado ouve Noite Feliz. Que vinho ele bebe, não sei. A mulher corre pra cozinha. As crianças, em torno da árvore, aguardam com ansiedade a chegada do bom velhinho.

Pobres coitados. Pobre de mim.
Não sei qual dos mundos merece mais compaixão.

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Amantes

 

“Te perdôo porque choras
Quando eu choro de rir
Te perdôo
Por te trair”
Chico Buarque

Deitado,  mãos  com  dedos  entrelaçados  sob  a  cabeça.  Os  olhos  mirando  a luminária, o teto. Sei lá. Acha que, em verdade, não mira nada, absorto, aposta, em reviver  o  que  entre os  dois, mais  uma  vez,  aconteceu. Conferiu,  no  banheiro,  o sabonete  e  o creme  dental — já  se  habituara  a  com  ela  encontrar-se  sem  usar perfume algum, o que, não sabia ele, mais a excitava. Tudo em ordem. Quis deixar na  boca  o  cheiro  da porra  de E.,  para  que  J.,  ao  beijá-la, sentisse-o  no  palato. E assim fê-la. Vestiu-se ainda no banheiro. Repôs os anéis e o colar já no quarto. Ele quis  levantar-se. Disse-lhe para  continuar  na  cama;  que preferia  sair  e  ter  como imagem ele deitado, nu.
Assim ficou. Ouviu o destrancar da porta, e, em seguida, sendo fechada. Levantou-se. Dirigiu-se ao  banheiro.  As  mãos  sobre  a  parede  e  a água  a  despejar-se sobejamente  sobre  o  seu corpo. As  lembranças  levaram-no  à  ereção. Definitivamente, não se sentia, apesar do prazer que G. lhe proporcionava, feliz. O fato de G., após encontrarem-se, retornar ao marido o incomodava. Quantas vezes lhe pedira para abandoná-lo?  Oh, pobre coitado.

sábado, 28 de novembro de 2009

BLONDIE

DE ONDE VEM
Um ponto no infinito. É o que a objetiva capta quando a cortina se abre. Quando avança lentamente uma imagem trêmula surge no canto. Sob um sol causticante. Um só corpo é o que parece ser. Quando se fecha aí se vê. Não é o que se pode chamar exatamente de marcha lenta. Movem-se por inércia. Não são as patas que removem os grãos é que as impulsionam. Os joelhos já não dobram mais.

PARA ONDE VAI
Eles avançam. No desfiladeiro se deixam arrastar sob o olhar atento de um caramujo do deserto que enterra a cabeça na areia aos primeiros gritos do coiote. Tão descarnados. Tão sedentos. Difícil dizer quem é homem quem é montaria.

QUAL O SEU NOME
Desviada para o lado esquerdo a cabeça baixa pela força gravitacional abandonou o movimento do pêndulo. O chapéu mais ainda. Não impedem que o sol siga abrindo crateras. O charuto no canto da boca o barulho do vento na noite passada apagou.

NINGUÉM JAMAIS SOUBE
Ainda assim ele segue. As rédeas seguram a mão esquerda. Mas não se engane quem vê a outra dormindo sobre o coldre. Está atenta. E formigando.

Vamos. Faça o meu dia.

sábado, 24 de outubro de 2009

CÔNJUGES

“¿Pó de cacos de vidro na comida dele?”
É tiro e queda.
“¿E depois, casamos?”
Não antes do seu luto fechado e muita lágrima em público.
“¿E depois?”
Aí eu, a grana e você... Vidão!

domingo, 11 de outubro de 2009

A ENCOMENDA

“Atirador, quando compra vingança alheia
Tem que ter veneno na veia
Tem que saber andar num chão de navalha
Atirador tarda mas não falha”
Atirador, por Lula Queiroga

Sentado em frente ao homem de branco, viu a mão pálida aproximar-se, arrastando-se no tampo da mesa, pressionando uma foto. Afastou-se rápida, e sumiu por instantes. Uma gaveta abriu-se. A mão pálida voltou segurando um envelope. E ouviu o homem dizer “mate o canalha, e apenas o canalha.” Pegou a foto, e mirou-a, mentalizando o rosto do homem morto; sim, já morto. A menos que o envelope não contivesse o valor do contrato. Virou a foto, os endereço impressos: o do trabalho e o de casa. Largou a foto. No envelope, o dinheiro acertado. Não disse palavra. Apenas se levantou e encaminhou-se para a saída. Ouviu ainda o homem de branco dizer que queria no jornal a notícia da morte do canalha. E pensou: “tá lá, doutor.”

* * *

Seus olhos miravam o cano da arma voltado para si. Antes recebera uma coronhada entre os olhos, que lhe deixou aturdido, com o corpo atirado ao chão. Tonto, tentou levantar. Não conseguiu se pôr de pé. Mas ajoelhou-se. E seus olhos miravam o cano da arma voltado para si. Olhou para o lado e viu G., inerte. Tentou extrair de seu olhar a traição que sempre esperou. Mas nada lhe foi revelado. Ela estava, definitivamente, aflita. Ou era boa atriz. Voltou-se para o cano da arma. Segurando a arma, um estranho. Corpanzil, musculoso, olhar fixo em si. Mirou no dedo a afagar o gatilho. Voltou-se para o cano da arma. Não lhe parecia que tremia. Mas sentiu líquido a queimar-lhe as coxas, molhando suas calças. O homem em fração de segundos virou-se para G. e seu olhar dizia-lhe para conter o grito que anunciava, e não cumplicidade entre eles, que lhe justificaria tamanha violência. Quis falar, mas som algum emitiu. Não sabia a razão de ter sido agredido com tanto vigor. Mirou novamente o rosto do homem. Expressão alguma denunciada, a não ser a sua frieza. O certo, a impressão que teve, é que nunca o viu. Seu olhar, mirando o homem com a arma, buscava uma explicação. Mas o homem mostrava-se indiferente. Ouviu G. balbuciando “por favor, não faça isto. Pegue o que quiser, mas não faça isto.” O homem voltou-se para G. Pareceu-lhe ainda ausente qualquer cumplicidade. O homem estava disposto apenas a fundar o terror: afinal, em nenhum momento mencionou os dólares, ou as jóias, ou o Audi estacionado. Em verdade, não mencionara nada. Disse ao homem que não tocasse em G. O homem aquiesceu, encolhendo os ombros. Agradeceu-lhe. Sabia que G. não seria tocada. Na firmeza do homem em agredir-lhe, sentiu que poderia nele confiar. Ouviu o estampido e sentiu queimar a fronte.

* * *

Surpreendeu-se ao abrir a porta, projetando-se contra a parede. Um homem invadiu o seu apartamento, com uma espingarda na mão. O barulho chamou a atenção de R., que lhe acudiu. Foi, barrado, porém, por uma coronhada entre os olhos. Caído, R. tentou levantar,em vão. Não entendeu nada do que ocorria. R. olhou-a como se procurasse ajuda. Tentou gritar, mas o olhar do homem a impediu. A arma sempre mirada para R. Se tanto, e o que se lembra, disse ao homem que não fizesse mais qualquer violência, que levasse o que quisesse do apartamento. O homem a fitou, e logo entendeu que não era um assaltante. Imaginou, a princípio, que pretendia violentá-la. Mas viu o homem dar de ombros ao pedido de R. de que não a molestasse. Então o pior aconteceu-lhe: o tiro. O rosto de R. desfigurou em pólvora e sangue. Em seguida, o corpo abruptamente desmoronou sobre o piso enxadrezado, como se abatido uma peça qualquer. Sentia o cheiro da pólvora ainda quando se debruçou sobre o corpo. O sangue tingia sua blusa branca. Entre dedos, ao segurar a cabeça sem vida, miolos. Berrou o nome do morto, entre soluços, entremeando com palavras ininteligíveis. Voltou-se, sem muito se afastar do corpo, para pedir socorro, mas apenas viu as pernas do assassino sumir pela porta. Gritou por ajuda. Nem os passos do assassino mais eram ouvidos. Estava só, com o corpo. Estava sozinha. Correu ao telefone ligou para 198. Depois, sentada no chão, pernas dobradas, abraçadas, ficou a mirar o corpo, e se imaginou sozinha para sempre. A noite chegava com o seu luto.

* * *

Sucumbiu o desgraçado com uma coronhada, ao vir socorrer a cunhã, que afastara de sua frente. “O que foi, G.?”, pronunciou-se o desgraçado. Seus passos interrompidos com a coronhada, que o projetou para trás, até que colou a bunda no chão. Tentou levantar, mas o cano da escopeta o impediu. Virou-se para lado, para onde estava a cunhã. Voltou-se para o filho da puta, que olhou para cunhã como se buscasse auxílio. Seu olhar cortou o grito da cunhã. Ela ainda balbuciou que não fizesse aquilo, que levasse o que quisesse. Olhou-a como se dissesse que apenas queria a vida do filho da puta. Virou-se novamente para filho da puta, que, trêmulo, pedira que não fodesse a cunha. Apertou o gatilho, atingindo em cheio o filho da puta, que foi projetado para trás. Virou-se e dirigiu-se à porta pensando que seria bom foder aquela piranha. Mas não seria ela que o faria descumprir um contrato.

terça-feira, 29 de setembro de 2009

MARGARIDAS VERMELHAS

Vim assim que soube. Amigo de infância. Logo que cheguei, aquele constrangimento. Aproximei-me para vê-lo mais de perto. Fui interrompido por um acesso de tosse. Não conseguia parar. Meus olhos lacrimejavam, faltou-me o fôlego. Passada a crise, percebi que as velhas senhoras tinham parado de rezar o terço. À minha volta, todos me olhavam fixamente, com ar de censura ou de advertência. Ou era de comiseração? Não esperei a resposta. Sai dali imediatamente. De fininho e envergonhado. E adivinha o que estou fazendo agora, aqui do lado de fora que está mais ventilado e de onde a muito custo posso identificar a quantas trezenas vão de ave-marias? Prometeu parar. Eu também, diversas vezes. O máximo que consegui, numa delas, três meses. Por esse tempo eu ficava, como se costuma dizer, fumando nas calças. Carcinoma bronco-pulmonar. Quando soube, para melhorar a estima, ainda quis fumar um, o infeliz. Na manhã de hoje, quando acordou, contou-me sua mulher, estranhamente não sofreu. Olhou pro firmamento e fez um comentário. Nesse momento algumas nuvens tingiam de negro o azul do céu. Preferia não saber, foram suas últimas palavras.

Foi por causa dele que comecei, ainda no ginasial. Por pouco não me livrei. Tinha dificuldade, engolia muita fumaça. Ele insistiu e o fez com um argumento infalível. Ajuda a conquistar uma garota. Quando a gente está sem assunto. Serve pra quebrar o gelo, distrair. Enquanto traga, vai pensando no que falar.

Mas minha paixão inicial foi mesmo pelas embalagens. Quando criança, lá pelos oito ou dez, tinha um vizinho que gostava de Minister. Feito para o homem que sabe o que quer. Certa vez ele me deu um maço vazio. Comecei minha coleção. A gente transformava em notas. Isso depois de um cuidadoso trabalho. O jogo era desfazer a embalagem sem rasgar ou danificar. Primeiro descolava. Depois dobrava as laterais em direção à parte interna, mais ao menos na largura do dedo mindinho. Em seguida, com o polegar, e a mesma paciência de mãe ao passar a camisa de cambraia de pai, pressionava em ambos os lados para vincar bem. Ao final, dobrava ao meio, como se faz com as cédulas. Na bolsa de apostas entre os meninos da rua, Minister valia mais que Hollywood, cinco vezes uma Continental com filtro. A de menor valor era a do Gaivota. Índice de rejeição altíssimo, porque era o mais barato àquela época e não tinha filtro. A mais rara e valiosa era a carteira de Cônsul, mentolado e meio doce, um pouco enjoativo. Tinha uma vantagem. Bom para namorar, falar de perto, diziam os acima de meu tope. E era mesmo. Antes de conhecer, quando eu queria beijar, depois de umas tragadas, eu sempre chupava bombons piper. Com o Cônsul não havia com que se preocupar, podia beijar sem medo.

Saudades daquele tempo, quando tudo era muito inocente e romântico. Assim como no cinema. Filme em preto em branco tinha que ter fumaça. Sem um entre os dedos nunca haveria uma mulher como Gilda. E nem como Rita. E aquele olhar oblíquo, impetuoso, de femme fatale da Lauren Bacall pro Bogart? O instante entre o riscar e o acender. Impagável. Nunca esqueci.

Os tempos são outros. Não existe mais aquele glamour. A cada dia o cerco se fecha ainda mais. Pra onde você se vira tem uma placa de espaço livre. Tem dias que eu me sinto como um cão vira-lata, ninguém quer por perto. Acho que ele também se sentia assim. Pertencemos a uma raça em extinção. Eu e o cinzeiro. Outro dia, numa festinha, rodei a casa toda à procura de um. Não encontrei. Tive que me virar com um copo descartável.

Quanto à tosse? Está sob controle. Não sou do tipo que é facilmente surpreendido. Não dou moleza pro azar. Faço visitas regulares aos médicos. Já a investigaram. Enfisema intersticial, uma bobagem. É certo – e esse detalhe eu omiti – que às vezes vem acompanhada de alguns coágulos avermelhados. Minha mulher diz que são de sangue. Eu digo que são margaridas que meu organismo não consegue digerir e são expulsas. É a palavra dela contra a minha. E enquanto isso, pra organizar as idéias, vou fumando. Enquanto ainda é permitido fazê-lo em alto-mar.

sábado, 5 de setembro de 2009

BORGES

penetrei intricados labirintos
cruzei infinitas câmaras
e antes que minhas retinas mourejassem
fiz concessões
de que me envergonhei depois
e
não me perdi

na saída
vi um jardim de tulipas negras
um rio circular
em cujas águas purifiquei o corpo
quando emergi e me pus em terra firme
desfiz-me em grãos de areia
tornei-me infinitesimal
ainda assim
senti frio

fui varrido pelo tempo
busquei abrigo
numa das mil e uma noites
[imaginei que ali encontraria o sentido de tudo]
aqueci-me
mas aí veio a febre
numa delas
sonhei
que dormia como um justo
nos braços de Sherazade

toquei com o dedo a lâmina do espelho
vi vários de mim
multiplicados
sem fim
como naquele jogo que inventastes
sonhos tigres punhais

hoje são teus olhos
[Deus irônico!
engolidos pelo breu da noite]
guias opacos
que me arrastam
como a tua sombra
pelos corredores da biblioteca hexagonal

eu li [tu dissestes]
não há nada que é
ou que será
que [eu] já não tenha sido

agora sei do outro
[que é] o mesmo
ser Borges
duplo de si mesmo

eu sei você vai saber

sábado, 29 de agosto de 2009

MR. MARLBORO II - A RECAÍDA

Vou renascer dessas cinzas, murmurou, pensando em Fênix.
Antes vou dar mais uma tragada, disse resoluto, fazendo pouco caso do mar de cinzas à sua volta. Não é que se arrependera. Mas tava se lixando. Afinal, tudo não passava de uma comédia. Se é que faz tanto mal assim porque não proíbem logo a venda?

Mas como? Tentou se levantar, não conseguiu. Estava reduzido à cabeça, tórax e membros superiores, que estavam necrosados. Olhou-se no espelho. Não conseguia ver nada além daquilo a que ficara reduzido. Não havia mesmo como se reacender, já que não passava de um tronco.

Só havia uma saída. Torcer para que soprasse um vento forte. Com a ajuda, se impulsionaria até rolar pela sarjeta abaixo. Dali para a praça onde os mendigos costumam lutar contra o frio seria questão de minutos. Quem sabe um deles não se apiedasse. Mas havia um risco. Antes de chegar ao destino final, poderia ser esmagado por um sapato de um transeunte apressado ou de um antitabagista radical.

Quando veio o vento da madrugada, resolveu arriscar. E rolou até alcançar a porta da rua. Com mais alguns impulsos e o vento favorável, escorregou pelas valas, desceu ruas, subiu calçadas, desviou-se de um ciclista maluco, chegou enfim à praça e estacionou aos pés de um banco. Agora era aguardar o momento certo.

Perto dali, um velho mendigo, carregando às costas o apurado do dia, lentamente, se dirigia à praça e fazia figa para que sua cama não estivesse ocupada por nenhum concorrente. Acabara de tomar, por caridade do gerente, um cafezinho no bar da esquina. Pena que, freqüentado somente por não fumantes, nem deu pra descolar um cigarrinho, um toco que fosse.

Uma bagana era o que lhe faltava para fechar a noite, além de ajudar a enfrentar o frio.

Por isso mesmo quase não acreditou quando ao chegar à praça percebeu que encostado aos pés do velho banco havia uma ponta. Quando percebeu que não se tratava de uma miragem, abriu um sorriso e friccionou as mãos, ansioso.

Com muito esforço, agachou-se e apanhou-o com uma das mãos. Ainda está morno, vibrou. Foi apagado recentemente e esse é dos bons, é de doutor.

Segundos depois, ele tentava se equilibrar entre os lábios murchos e trêmulos do mendigo.

No início, quase que pulou fora. Mas quando o mendigo o reacendeu e seus pulmões foram invadidos pela primeira nuvem de fumaça, ele meio que esqueceu o hálito insuportável do velho.

terça-feira, 9 de junho de 2009

JOÃOZINHO, O PRÉ-ADOLESCENTE

É assim que se faz. Cospe na mão, já em forma de concha. No teu caso, que é canhoto, com a esquerda. Bem rápido. Não demora muito. Com o tempo, engrossa e cresce mais; caso contrário, devolvo o time de botão, mas tem que ter paciência. E não faz toda hora, senão fica amarelo e a mãe pode desconfiar.

Pro inferno a recomendação. Melhor ficar amarelo do que verde de fome. Toda vez é a mesma coisa. Ela chega e pede pra eu mostrar. Depois de conferir, faz aquele beicinho e me joga o balde de água fria. Ainda não, tem que crescer mais!

domingo, 31 de maio de 2009

sábado, 16 de maio de 2009

MEIO SÉCULO

Ufa!, cheguei até aqui. Sinceramente?
Não me importa se tiver que levar mais 50 anos
para fazer outro tanto. Isso mesmo.
Quem disse que vou dobrar
o cabo da boa esperança somente uma vez?
Estou apenas no meio da jornada,
que é maior do que a imaginada por Dante.

Tá certo que ainda não fiz minha revolução,
mas há o que comemorar.
Os brinquedos Lego, que nem humanos são,
comemoram seus 50 anos.

E partir de agora, farei que nem Borges.
Vou me duplicar, estabelecer frequentes
diálogos comigo mesmo, a partir dos 10,
que antes disso eu ainda acreditava em coisas impossíveis.

sexta-feira, 15 de maio de 2009

DON JUAN EM RUÍNAS,



“És um senhor tão bonito
Quanto a cara do meu filho
Tempo Tempo Tempo Tempo
Vou te fazer um pedido
Tempo Tempo Tempo Tempo”
Caetano Veloso



já não se olha no espelho: as mãos vincadas denunciam a vetustez. O rosto, antes das mãos, composto em mosaico. E quando inteiramente disforme a face, desprezou os espelhos. Foi quando se enclausurou no apartamento. Notícias, absolutamente inúteis, chegavam-lhe com Zefinha, serviçal, como fora a avó e a mãe. Sabe da vida lá fora, em verdade, por sua Nikula. Da varanda, até certo tempo, avistou o calçadão da Barão de Castelo Branco, com bundas em exercícios. Com elas, lembranças de algumas mulheres que tivera. Deixou de vê-las quando a memória falhou definitivamente. Agora, mira a luneta em direção à zona leste, e à frente de seus olhos apenas transeuntes.

Dom Juan em trapos, ei-lo dirigindo-se ao escritório, aflito para, num lampejo de memória, narrar mais uma de suas aventuras. À escrivaninha, nenhuma lembrança. Restara-lhe gritar por Zefinha que, lasciva, como a avó e a mãe, atendeu-o nua. E então narrou a sua desfloração por Laerte, em um elevador, como antes narrara o seu desvirginamento por Abreu, em casa; por Berto, num matagal; por Cardoso, num campo de várzea; por Deodato, atrás da matriz; por Francisco, num Fusca; por Guilherme, num riacho; por Henrique, num motel; por Ismar, numa avenida; por Jaime, num jet sky; e por Kelson, num hotel, como se tivesse sido, efetivamente, a sua primeira trepada. À narrativa de Zefinha, por ele adornada, nenhuma ereção, mesmo quando, vez por outra, olhava a carne fresca, os pelos púbicos. A terceira geração, para ele, definitivamente, inatingível.

Nem lembra, coitado, que a mulher, sua companheira, por várias vezes tentou matá-lo, possessa por flagrá-lo em sem-vergonhices. Ele sempre, quando não possível as negar, alegava que fora seduzido, cinicamente recomendando que as matasse e não a ele, verdadeira vítima. A mulher, nessas ocasiões, retrucava que não se tornaria uma serial killer. Os amigos, quando os tinha, lembravam dos episódios, às gargalhadas. Agora, restava-lhe, acha, apenas Elizeu — há menos de um ano se falaram ao telefone. Os demais mortos estavam.

O que lembra, e lembra bem, é do temor que tinha da velhice. Os primeiros cabelos brancos pareceram-lhe uma condenação severa. Nunca supôs que a pena que o tempo iria lhe impor era a da prisão perpétua, sem qualquer apelação. Melhor a de morte. A morte — ah, a morte! —, recusava-lhe como hóspede: a certeza advinha de fracassadas tentativas de suicídios. Definitivamente, teria que viver com o que mais abominou na vida: o envelhecimento.

sexta-feira, 8 de maio de 2009

JOÃOZINHO, O VOYEUR, DEPOIS QUE O CINTURÃO VERGASTOU-LHE AS COSTAS NUAS SEGUIDAS VEZES.

- Então, moleque! Ainda vai espionar sua irmã (que, dentro do quarto, com o ouvido colado à porta e nua, mordia, de puro gozo, as unhas e ria de prazer, isso depois dos sucessivos orgasmos que coincidiram com as vergastadas) se trocando pelo buraco da fechadura?
- Prometo (que) não, mãe, respondeu, ajoelhado, a cabeça baixa, as mãos para trás, a esquerda fechada com a falange distal do polegar introduzida entre o indicador e o médio.

quinta-feira, 23 de abril de 2009

O BIGODE DE NIETZSCHE

era preciso, a bem das instituições, podar o bigod de Nietzsche, o bigo de Nietzsche, o big de Nietzsche, o bi de Nietzsche, o b de Nietzsche, o de Nietzsche.
Estava, enfim e assim, restabelecida a ordem. Mas eis que de repente, não mais que de repente, o b de Nietzsche, o bi de Nietzsche, o big de Nietzsche, o bigo de Nietzsche, o bigod de Nietzsche, o bigode de Nietzsche!

quarta-feira, 1 de abril de 2009

MR. MARLBORO

dedicado aos fumantes da aldeia

Quando, cambaleando, chegou em casa, a noite já se despedia. Apalpou os bolsos à procura de um, não achou. Desolado, exclamou: vício maldito! Maldito ou não, precisava de um imediatamente. Pior é que nas proximidades não encontraria nada aberto. Sem alternativas, uma idéia acendeu-lhe a mente. Transformo-me eu mesmo em um. Riscou o fósforo. Iniciou pela ponta dos dedos dos pés, ainda úmidos, mas já livres dos sapatos e meias, deixados ao longo do corredor. Teve de repetir a operação seguidas vezes. Na terceira, obteve sucesso. Começou então a tragar, consumindo-se em longas baforadas. Quando a brasa atravessou os órgãos genitais, sentiu uma estranha sensação, e gostou. Quis sentir de novo, mas já não era mais possível, a região agora era somente um rastro de cinzas.
Há tempo para tudo, pensou.
Pois não é que quando a brasa consumiu o abdome e começou a se aproximar do tórax, ele, tomado por um impulso vindo não se sabe de onde, resolveu parar de fumar e se apagou.
Tinha pavor de câncer de pulmão.

domingo, 8 de março de 2009

MULHER, NA OPORTUNIDADE DO DIA

Mulher!
um homem bate à tua porta
e pede permissão para pronunciar teu sagrado nome.
Não, não é para invocá-lo em vão,
mas para te dirigir algumas palavras
falando de dentro do coração.

E quisera esse homem que suas palavras tivessem a força da emoção de Neruda quando venera tua alma feminina ao cantar a canção do amor armado e incondicional.
Ao menos brotassem das mesmas a espontaneidade presente na lírica de Drumonnd que, mesmo tímido, te cobre de beijos em seus poemas.
Na verdade, para ele já seria de bom tamanho se tais palavras fossem pronunciadas com idolatria, a mesma de Vinicius quando exalta tua existência mulher.

Mas na falta do menor talento, esse homem pede apenas licença para escrever teu nome na pedra, na areia fina da praia, no azul do firmamento, nas águas profundas, nas estrelas mais distantes, abaixo e acima dos trópicos, nos sinais de trânsito, nos quatro pontos cardeais, nos luminosos das grandes cidades, nas aglomerações urbanas, no ponto mais extremo da terra enfim.

O teu nome em nome de todas: mães, filhas, companheiras, guerreiras, trabalhadoras, cotidianas e comuns.

Mulher!
Dou-te um nome, melhor dizendo, vários: Marias, Clarices, Joanas Darc’s, Madalenas, Annes Frank, Olgas Benário, Teresas de Calcutá, Coras Coralinas, Irmãs Dulces, Cecílias Meirelles, Cleopatras, Afrodites, Helenas, Isabelas de Castela, Marias da Penha, Quitérias e Stuarts, Elizabeths, Rainhas Vitória, Anitas Garibaldi, Catarinas, Chiquinhas Gonzagas, Margaridas e Rosas de Luxemburgo.

Essas e tantas outras que aqui não nomeie, e tu mulher!,
ao panteão da glória elevarei.

Porque, além de tudo, ser mulher é desfibrar, fibra por fibra, o coração do homem, também.

sexta-feira, 6 de março de 2009

GREGA

Não era grega, acho. Mas quando pela primeira vez a vi, a impressão foi a de que, com elegância, o tornozelo à mostra, preso por uma corrente, acabara de descer de um óleo na parede. Sim, Dominico Greco! Não que fosse, mestre, exatamente igual às donzelas longilíneas que seu gênio retratou. Mas quase tudo nela, quando não alongado, era generoso. Fêmea perfeita. Mãos, dedos, o par de pernas torneadas, os quadris, os seios balouçando, o pescoço, o brilho dos olhos, o dorso nu, enfim, menos suas vergonhas, me certifiquei somente depois, não mediam mais que duas polegadas.

Grega podia até não ser, mas assim se movimentava. Foi o bastante para que eu passasse a venerar o solo em que ela pisava, nada de túnica a lamber o chão, o espaço que ocupava com o corpo longo e ondulante; na praia, a areia fina, fofa e quase invisível que ela removia com os pés por onde passava, na verdade se curvava em sinal de respeito.

Se grega ou não, o fundamental é que era uma deusa. Ártemis, Hera e Afrodite reunidas ou um pouco de cada qual. E nem perdeu a aura divina no dia em que se mostrou a mim como veio ao mundo. A genitália? Lisa, alva, pequenina, sem pelos na pele branca.

Não era grega, agora posso dizer. Mas quando pela primeira vez minha espada de fogo, fremida, rasgou-lhe o ventre, Zeus, do alto do Olimpo, iracundo, disparou suas flechas de ciúme.

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

CONJUNTO DA OBRA

A julgar pelo conjunto, tudo perfeito. Dava pra arriscar. Na linha de frente, os seios, de balanço em balanço, se movimentavam como se fossem dois postos avançados. Pernas e coxas bem distribuídas e apertadas no jeans desbotado pareciam ser feitas de carnes maciças. O bumbum redondinho e bem encaixado respondia bem aos movimentos das pernas.
Mas, como era noite, pairou-lhe uma dúvida: e se for verdade que todos os gatos são pardos?

sábado, 24 de janeiro de 2009

VÁRZEA DOS VAGALUMES

Então, na manhã chuvosa, capinaram o mato virgem. O terreno irregular os pés ligeiros atrás da bola o-ajeitariam, alegria alada aquela nas infantes almas que saber íntimo tinham da $ombra sobre o sonho deles, $oturna. Eis
o campo, disseram. E o campinho se-fez. E o-chamaram Várzea dos Vagalumes, por causa das muitas estrelas, naquele instante, no teresinense céu. Isso foi no primeiro dia.

Depois proclamaram Façam-se
as traves. E erguidas ei-las, após fincarem, em cada lado e frente a frente, toras de talos de coco, cada gol com duas retas entre si paralelas, a terceira perpendicular a ambas e que elas amarraram, a suficiente altura. Era, isso, o segundo dia.

Aí decidiram Vamos
marcar o campo. E enfiaram três talos dum lado, três do outro, as linhas de fundo e as laterais e a do meio assim assinaladas. Ao longe, o Poti se derramava no Parnaíba. No terceiro dia, isso.

Noite seguinte se-reuniram para apreciar os luzeiros no firmamento do céu azultigrino de Teresina e o campinho sob os luzeiros no firmamento do céu azultigrino de Teresina. E viram que até sem o Sol podiam, se quisessem, jogar. E acharam bonito demais. Isso era o quarto dia.

Aí soltavam pipas, outros costuraram a bola de meia, aind'outros teciam as redes de embira para nas traves, com cadarços velhos, amarrar. E só suspenderam um pouco o sonho quando ouviram Meninos,
hora já a de dormir, vocês. Elas, também, maravilhadas. No quinto dia, isso.

E quando a bola rolou, em meiga manhã de maio de um domingo, acertado estava que nada de juiz, barreiras, impedimentos. E a torcida dançava e cantava e pulava a cada lance, a cada gol, que eram muitos. E mais feliz ninguém ali podia ser, que tudo mais que gostoso, uma delícia. Era, isso, sexto o dia.

Mas eles chegaram, os homens. Aqui
este terreno tem dono, saibam. Mas
abandonado estava, até agora, sem nem muro. Ora
aqui não é casa da Mãe Joana, não. Mas,
major, só mato aqui, antes. Tem
dono, o terreno. E sem mais dizer derrubaram as traves, e chutaram as sinalizações, e empurraram as mulheres, e esmurraram os homens das mulheres, e tomaram, a cacetadas, as baladeiras todas, e quando os cães adestrados, por algum motivo secreto, se-recusaram a avançar, veio a Polícia Montada que, mesmo os cavalos as patas malequilibradas sobre as petecas multicores de toda parte atiradas eram, defendeu, briosamente, a propriedade. Diz
que de uma Igreja o terreno, sussurrava-se. E nem atentaram os bilinguins que de miúdos olhos as lágrimas, em filetes, desciam, eles apenas curumins pobres que no regaço das mães se-lançaram e se-viram, enfim, (a)colhidos. No sétimo dia, isso.

Mas quando, semana depois, pela Noite parida Manhã outra veio, o baldio terreno nas vagamundanças de Genésio descoberto foi, ele um negrinho entanguido que não raro anda às cambalhotas, mãos no chão, pés no ar. Então, sob chuva intermitente, os meninos capinaram o mato virgem...

sábado, 10 de janeiro de 2009

LENTA AGONIA


Recolhe-se ao quarto, lentamente. Dá duas voltas na fechadura, vai até ao banheiro. Alguns minutos se passam. Quando sai, deixa a torneira da pia aberta.
Arrasta-se até o espelho. Como sempre ocorre, há vários anos, não gosta do que vê. Mas não é exatamente isso o que mais lhe aperta o peito.
De volta, senta-se à beira da cama, põe os chinelos cuidadosamente um ao lado do outro, lê um trecho de um versículo qualquer do Apocalipse.
Minutos antes, ele foi até a janela, abriu um pouco as cortinas, olhou para a lua e percebeu que passava da meia-noite, os galos da madrugada já dormiam; mesmo assim, apurou os ouvidos, e, aliviado, constatou: nenhum canto prenunciando a manhã.
Agora, com um esforço desmedido, entrecerra os olhos. Quer ver o rio tinto cruzar por debaixo da porta antes que a bruma cinzenta se desfaça.