domingo, 13 de novembro de 2011

FALANDO COM ELA

Quando entro, seus olhos estão voltados para o teto. Não é azul. É branco-neve. O que ela vê? Nuvens sobre um céu azul!
Aproximo-me. Digo oi. Desvia olhar, assustada. Olha-me fixamente. Não pisca. Por alguns segundos, deixo que aqueles olhinhos miúdos penetrem minha alma. Espero uma reação, uma palavra. Percebo o esforço pra me reconhecer. Mas, somente me olha. Não há brilho nos olhos, cujo olhar é opaco, vago, perdido em algum lugar longe dali, muito longe.  Em que mundo vive agora? O corpo guardado embaixo de lençóis. São muitos os lençóis. Escondem a fragilidade e toda uma vida de entrega e dedicação. Quase que já não existe corpo debaixo dos lençóis. Quase não existe mais vida.
Depois de muito me olhar, com um esforço supremo, balbucia alguma coisa. Aproximo-me mais.

É a minha rosa? (Sempre me chamou assim. Diz que sou o filho mais bonito do mundo).
Tento me segurar.
Pergunto como ela está.
Responde que está viva
Digo que bom que a senhora está viva.

Ela volta a fixar os olhos no teto branco e frio.
Uma lágrima escorrega pelo canto do olho, que a mão trêmula tenta enxugar.
O braço direito começa a tremer.
Pergunto se sente frio. Com dificuldade, balança com a cabeça e sussurra baixinho. Pelo movimento dos lábios percebo que diz que sim.
Mas não está tão frio assim, penso.
Fico preocupado e chamo a enfermeira que verifica a pressão, o batimento cardíaco, os sinais vitais.
Tá tudo bem, deve ser a emoção.

Eu olho pra ele, os olhos parecem nadar. Mas não diz palavra. Com o auxílio da bengala, ensaia se levantar da cadeira e se aproximar, eu peço que ele fique sentado, não se levante.

Quando a enfermeira sai, eu me aproximo novamente.
Quem é você?
Seu filho, a rosa mais bonita do seu jardim.
E os velhinhos?
Que velhinhos?
Eles já comeram?
Sim, já estão alimentados.

Começo a acariciar seus cabelos e brinco. Digo que estão muito brancos, parecem novelos de algodão e que precisa pintá-los.
É verdade, ela diz. Em seguida, ensaia um sorriso que, de repente, interrompe.
Gosta de cafuné?
Gosto, mas me fale a verdade, os velhinhos já morreram?
Que velhinhos?
Aqueles velhinhos. Eu prometi a eles que não morreriam. Não antes de...
Não morrerão, tranqüilizo.

Ela volta o olhar pro teto cinza-escuro.
As nuvens estão carregadas, vai chover hoje!
Ele sofre calado. Será que é de arrependimento?


quinta-feira, 3 de novembro de 2011

46

Quando Ismália Palácio das Dores batizaram,
Hitler invade a Polônia.

Quando, já no Colégio das Irmãs, ouve o badalar repentino dos sinos da São Benedito
não sabe como sabia que casas se estavam queimando na cidade como
se Therezina a Roma de Nero, diz irmã Natália.

Quando Ismália sangrou, e espantou-se,
Ghiggia, Schiaffino e Obdúlio Varela lacrimejam os olhos do Brasil.

Quando ela, também primeira vez, enamora-se,
e ouve afaste-se desse sujeitinho sem eira nem beira,
Getúlio matara Vargas.

Quando nas aulas de português descochilou
é que Irmã Natália fala coisas como a vida é solecismo, na verdade é um anacoluto, a vida.

Quando a casam, e então Ismália Palácio das Dores Guimarães,
os russos arremessam o Sputnik.

Quando a filha veio, e sentiu, em igual dose, euforia e remorso,
Garrincha macunaíma na Suécia.

Quando, falecidos os pais, ela divorcia, e então Ismália Palácio das Dores,
jamais esqueceu que de um rádio vinha Peguei o trem em Teresina
Pra São Luís do Maranhão
Atravessei o Parnaíba
Ai, ai, que dor no coração...

Quando, noite já um tanto desestrelada, nela cessou de vez o antipático sangue,
O povo marcha Um,
dois, três, quatro, cinco mil,
queremos eleger o presidente do Brasil!

Quando Odara, do Natal na véspera, o tamborete sob os pés chuta, e língua de fora fica, e roxo o rosto rui, então Ismália Palácio das Dore
Ismália Palácio das Dor
Ismália Palácio das Do
Ismália Palácio das
Ismália Palácio da
Ismália Palácio d
Ismália Palácio
Ismália Paláci
Ismália Palác
Ismália Palá
Ismália Pal
Ismália Pa
Ismália P
Ismália
Ismáli
Ismá
Ism
Is
I