quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

ECOS DE UMA INFÂNCIA

As folhas secas varridas do chão levantam vôo. Um gato, rápido, dobra a esquina (vi a ponta do rabo preto) e se esconde num canto qualquer da velha casa. Minutos depois, ainda o vento. As folhagens das mangueiras tocam-se umas nas outras, se cumprimentam, fazem festa. Vem chuva aí. Por enquanto, pingos, apenas pingos, um aqui outro acolá. Na minha cabeça, um deles explode. Olho pro céu. Um clarão parte no meio a nuvem negra. No instante seguinte, o chão estremece sob meus pés. O velho vira-lata, que mal arrasta a pata, não se assusta mais. Deus ralhando com São Pedro. Mais pingo pingando. Ergo mais a cabeça. Escancaro a boca. Um deles, que eu aparo com a língua, com o impacto, se transforma em estilhaços. Doce. O crepitar no telhado. Agora sim, é chuva. Sonora. Caí do céu, escorrega pelo chão. De volta, aquela infância. O cheiro de terra molhada. Fofa, fina, revirada. O banho de bica. A bronca de mãe. O grito de pai. Noite de febre. Minha tia e sua reza forte. Na manhã seguinte, o riacho cheio.

terça-feira, 9 de novembro de 2010

COMO SE ESTIVESSE EM UM PAREDÃO



Aqui estou na peleja. Minha trincheira não me protege. Não há armas. E poucas artimanhas uso: frente a frente com o adversário, dele me aproximo, já perdeu, já perdeu, entôo; corro à minha trincheira, e nela, como num ritual, desloco-me entre 7,32 metros, mirando-o, parando no centro, vez por outra, quando flexiono as pernas, abro os braços e lanço o torso para frente, com confiança.
O que vem a seguir é imponderável. O certo é que já sou mártir desde quando se assentou o projétil a 11 metros de onde me encontro.  Não tenho por que (e não quero) me esquivar do tiro. Não como um suicida. Mas como super-herói, que, com os seus poderes, interrompe a trajetória do projétil, projetando-se, em voo, para um dos lados, ou mantendo-se onde me encontro.
Em simetria, recuo como o meu rival, sem dele tirar os olhos. Abro as pernas, e as flexiono; projeto-me para os lados com os braços. Movimento-me como pêndulo. O petardo é lançado. Salto. E, com as pontas dos dedos, toco-o. O bastante para afastá-lo para a lateral. Uma multidão urra. Levanto-me. Sou festejado.
Em simetria, recuo como o meu rival, sem dele tirar os olhos. Abro as pernas, e as flexiono; projeto-me para os lados com os braços. Movimento-me como pêndulo. O petardo é lançado. Salto no vazio. Escapo do projétil que vaza a trincheira. Uma multidão urra. Levanto-me. Não tenho ninguém ao meu lado. Nem me olham.
Não, não preciso ser herói. Basta que o rival tenha o seu inferno: a minha glória.

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

ALÉM

Desde crianças, a porta, aquela, fechada, a sete chaves.
“Que nunca se tente, nem em sonho, abri-la.
“?”
“Mistério, meu filho. E com porta fechada assim a sete chaves não se brinca.”
“Ninguém nunca...”
“Não. Desde o trisavô do seu bisavó do seu avô do seu pai... E assim deve ser. Com essas coisas não se mexe.”
Agora, já muito velho para temer e sem nem mais a desculpa da falta da sétima chave, por que não girá-las, nesta fechadura, mesmo tão trêmula a mão? Uma... Duas... Três... Quatro... Cinco... Seis... Sete... Empurro-a, a ansiedade
(o nome mais belo do medo)
que nem garras cravadas no humano peito... Um jato de luz, ofuscante. Aos poucos, ando. Desço escada em espiral. Sob penumbra, infinito corredor. Subo escada em espiral. Infinito corredor, sob penumbra. Desço escada em espiral. Corredor, sob penumbra, infinito.
(Ecos das leitura de Borges?)
Giro... Giro... Giro... Giro... Giro... Giro... Giro... Empurro-a, o medo
(o nome comum da ansiedade)
que nem garras cravadas no humano peito... Onde o jato de luz? Ligo a lanterna. Vasculho, crescente a agonia. Um quarto? Ora, um quarto! Apenas esse quarto vazio? Não! Não!!, eu urro Não!!!, o peito pleno de mágoa, mas ouvidos não ouvem, não querem ouvir. Quedo-me. Choro. ?Como pude crer
(pensando bem, foi melhor assim)
que o velho Astolfo errava quando na verdade não errava o velho Astolfo
(pois muita merda não fiz por esse outro lado da porta intimidado)
e o velho Pedro não errava quando na verdade errava o velho Pedro?
(Astolfo e Pedro, cabeças muito brancas
((disso lembro bem))
(eram)
((e de uns tempos pra cá essa hipótese cogito))
(talvez não Astolfo e Pedro, mas ora Astolfo, ora Pedro)
!A montanha
(((terrível era confirmar)))
parira um rato!




.

domingo, 12 de setembro de 2010

MR. MARLBORO III

Ando meio suicida nos últimos dias. São essas nuvens negras. Esse ar sufocante. Os cães, calados, não me deixam mentir. Mas não se preocupe. Hoje eu não me mato. Tenho algo mais urgente a fazer. Um último pedido que eu próprio me concederei. Fumar um cigarro. Um não, vários. Que amanhã não sei se estarei vivo. De repente, posso mudar de idéia. Serve também para o caso de claudicar, não ter coragem. Garantir o resultado, ainda que futuro.

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

... AUTOMÓVEIS E AUTOMÓVEIS E AUTOMÓVEIS!

Para Regina Lúcia

Desde criança, nos idos de 1910 isso, aquela porta fechada a sete chaves, e a proibição, antiga: que nunca se tente nem sequer abri-la.
“Mistério, meu filho, o que há aí, por trás. E com mistério não se brinca.”
“Ninguém nunca tentou abrir ela, mãe?”
“Não, filho, nunca. Desde o tempo de seu tataravô. E assim deve continuar. Com mistério não se brinca.”
Agora estou muito velho para temer alguma coisa e nem a desculpa de que me faltava a sétima chave posso arguir, que há muito a possuo. Por que não girá-la de uma vez, mesmo assim tão trêmula a mão? Giro... Empurro-a... Um jato de luz me cega. Aos poucos, porém, vejo. Desço a escada em espiral. Atravesso, sob penumbra, o enorme corredor. Subo, cansadissimo, a escada em espiral. Às minhas costas, o Poti; à frente, muitos prédios, altos prédios, que em Teresina não há. Onde, meu Deus, onde eu estou?
“Sim, mãe, com mistério não se brinca.”
“Então se esqueça de vez dessa porta fechada, filho.”
Quando quis voltar, nada atrás de si, senão...

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

A LEITORA

Foi intenso. Começou quando ele faz conjecturas acerca da cor dos seios e o efeito da luz fosca incidindo sobre eles. Na cena do beijo, meus lábios já se sentiram mordidos. Senti-me como ela, enredada numa teia de desejos e fantasias. Ondas de calor começaram a atravessar meu corpo, da cabeça aos pés. Incendiei-me. Nunca ficara tão excitada assim. Antes, apenas a música do Chico tinha essa força. Quando ele descreve o momento em que ela se mostra como veio ao mundo, a freqüência entre as contrações aumentou. Impressionante as semelhanças. A cor da pele, a expressão dos olhos, as ancas generosas denunciando o sangue negro, o tamanho dos seios, nem tanto, mas os meus também são morenos e suas extremidades ficaram enrugadas quando ele os toca levemente com a ponta da língua para depois envolvê-los por completo, como quem leva à boca uma manga-de-bico, e, em seguida, passa a degustá-los sem nenhuma pressa.
Mas nada se compara com o momento em que, com as pontas dos dedos, com as mãos e com os olhos, ele troteia ao longo do corpo nu e estendido.
Quando me toquei, percebi que estava molhada, mais que isso, um rio que descia lentamente azeitava minhas pernas.
E quando finalmente veio a cena da espada de fogo e de como ela rasga aquele ventre, a minha vontade foi a de entregar-me incondicionalmente. De ser golpeada. De ser aquela personagem.

quarta-feira, 28 de julho de 2010

UM CLARÃO DENTRO DA NOITE

Teve um dia que a chuva veio mais forte, chuva de raios e trovoadas. É certo que naquela hora me lembrei das palavras de minha avó. O mundo não acabaria duas vezes do mesmo jeito. Se tivesse de acabar seria com fogo. Por isso mesmo, quando o tempo era de preparar a terra, evitava sentar na varanda, como sempre fazia no final de cada tarde. Nas montanhas, o céu ardia em chamas. Não contava pro pai, mas tinha medo do fogo avançar até nossa casa, queimar nossas vidas.
Que no dia daquela chuva meu medo foi muito maior eu não nego. Todos reunidos em torno da mesa de jacarandá sob a luz do velho lampião, cuja chama, embora já gasto o pavio, teimava em resistir ao sopro do implacável vento.
Todos fechados na alma para espantar o medo, menos meu pai. Eu não era o único que tremia. Meu dedo indicador da mão direita, aquele das trinta noites de febre sezão, ficava enrijado nessas horas, sinal de que a noite seria longa. Por certo, meu tio Antonio não viria para contar histórias de trancoso. Se tivesse de vir, antes ouviríamos o assobio. O que ouvimos não foi um assobio. Meu irmão achou que era um tropel de cavalos ao redor da casa. Minha mãe disse que as batidas eram na porta. Eu não disse palavra. Meu pai encerrou o assunto dizendo que eram apenas trovões. Pra completar, piscou de forma intermitente o olho esquerdo do meu irmão. Ocorria sempre que estava na iminência de sofrer um colapso. Meu pai percebeu quando minha mãe o procurou com o olhar. Mas antes que minha irmã caçula começasse a soluçar, ele, mais rápido que pensamento, abriu a porta (que fechou em seguida) e arremessou o velho machado para bem longe, além do pátio da casa. Pra atrair os raios, disse. Lembro-me agora que entre o abrir e o fechar o mundo lá fora se iluminou e o clarão revelou uma face serena. Quando disse não se preocupem, já passaram, aqui eles não entram mais, os pulmões de meu irmão pararam de chiar.
Um simples gesto aquele. Que alívio. E então olhamos pros olhos de nossa mãe, que nos confortava com um sorriso. Meu pai retomou seu lugar à mesa. Minha irmãzinha voltou a se entreter com a boneca de espiga de milho. Meu irmão, me provocando, fez girar sobre a mesa o seu pião.
Estávamos seguros, o mundo não ia se acabar.

domingo, 6 de junho de 2010

NOVELA LIBERADA PARA ESTE HORÁRIO

A irmã via tv, pensava no galã das oito e sonhava com o mundo encantado das celebridades, algo distante da periferia e da miséria em que vivia mergulhada. Certa noite, saiu para um passeio inocente e, numa esquina qualquer, um maníaco a estrangulou.

Diante do vídeo, choraram a morte da irmã.

A mãe via tv e fazia mantas de crochê pra complementar a renda familiar. Durante os comerciais sonhava com o futuro do filho. Continuou a fazer crochê diante da tv, até que o corpo encurvou-se, os dedos enrijeceram, a respiração parou. Não pode ver o grande homem em que se transformou o filho que, com vocação para o entretenimento, diariamente engolia fogo e querosene nos sinais de trânsitos da zona leste.

Diante do vídeo, choraram a morte da mãe.

O pai via tv e sonhava com a aposentadoria por invalidez. Depois de uma longa luta desigual, o coração não resistiu à burocracia da previdência social.

Diante do vídeo, chorou a morte do pai.

Ele via tv. Perdera a irmã, a mãe, o pai, mas ainda lhe restava a tv. Sentindo-se só, resolveu se casar. Acabou desistindo. A renda irregular e o hálito de querosene não recomendavam tal ousadia. Resolveu entregar-se totalmente à tv. Uma idéia estranha começou a verrumar-lhe o juízo: porque não se casar com a própria tv? Afinal, ela nunca o deixara só. A idéia amadureceu, virou decisão. Foi ao Cartório mais próximo e manifestou seu desejo. Diante do inusitado, o Escrivão o encaminhou ao meritíssimo que, de plano, repeliu a idéia.

Desolado, pensou em fazer uma loucura, mas acabou por concluir que não há nada mais deprimente do que um defunto sem choro. Veio-lhe então a solução: pegou a nota fiscal da tv e escreveu com a esferográfica: Certidão de Casamento.

Passaram a viver juntos, sem grandes conflitos domésticos, uma vida plena de lances emocionais: hoje o patrãozinho distribuindo dinheiro no auditório, amanhã aquele apresentador falando baboseiras dominicais, ali outro anunciando mais uma paternidade duvidosa. Um dia, nunca mais retornou aos sinais de trânsito, os poucos amigos o abandonaram, os vizinhos começaram a apresentar inusitada agressividade. Mas a tv mantinha-se fiel, pronta, solícita. É certo que, uma vez que outra, mais por culpa da companhia de energia, saía do ar. Convencia-se de que a companheira estava naqueles dias. Dormia mais cedo.

Tempos depois percebeu que estava cego. Uma onda de desespero invadiu-lhe a vida. Restava, ainda, a possibilidade de ouvir o inconfundível som da tv. E foi exatamente numa dessas carícias mais prolongadas que se deu a triste descoberta, razão da tragédia que se anunciava: os cupins devoravam impiedosamente a parceira.

Diante do inexorável, finalmente se decidiu. Armou-se de um pé-de-cabra e de uma faca de cozinha. Num golpe certeiro, espatifou a tv e, nem sequer um gemido, cortou a garganta. Ninguém presenciou a cena, rápida, precisa, sem cortes. Mas a tv ainda emitiu um som rouco e ininteligível, talvez choro.

domingo, 23 de maio de 2010

Infância

Duas ou mais coisas de que sinto saudade: do único vialejo que ganhei, presente não sei de quem; perdi-o antes mesmo de aprender a tocá-lo. Minha caneta esferográfica de quatro cores, o Jeep cara alta que encarava qualquer rodagem. O Fenemê do Eron comia poeira, os outros aparentados a morrer de inveja. Ah, minha fazenda de gado feito de ponta de chifre de boi. Meu cavalo alazão de talo de carnaúba com suas orelhas empinadas e atentas a tudo, arisco que só, o rabo levemente tosado dava mais elegância ao trote garboso.

Minhas conversas de final de tarde com meu primo Raimundo. Debaixo do pé de figueira, montados a cavalo, e sob o olhar atento da tia Araci, discutíamos quem tinha mais cabeça de gado zebu, nas suas contas era sempre ele.

De acordar cedinho com o assobio de meu pai ordenhando a vaca parida, o bezerro, arreado, queria mais, não deixava quieto o rabo. De beber leite mugido, ainda morninho, no copo de alumínio. Da janela eu ficava esperando, os olhos remelentos. Um bico do peito dava pra encher um balde. No meu copo, a espuma ficava por cima. Eu bebia de um gole só, meu pai se ria com os bigodes brancos que marcavam meus beiços. Dos pigarros de minha avó Luisa e sua asma, nas noites de frio, aquilo só me doía e me deixava insone. Dos peitos de Vitória balançando quando pilava arroz, dos banhos quando o riacho estava cheio. Eu mergulhava para mexer com as vergonhas da prima Júlia, deixando boquiabertos os outros; os mais novos, a mão na boca, em vão, tentavam esconder o riso.

Das arapucas de pegar passarinho. De chupar manga de fiapo, me lambuzar com mel de sanharó, arrancar cabeça-de-frade pra tia Julita fazer cocada, bolo de forno, comer umbu verdadeiro, tirar água do poço, atirar em labigó, catar oiticica na beira do riacho para fazer sabão, de comer maria-preta, das espingardas de talo de bananeira.

Do que eu não gostava: beber emulsão Scott e tomar injeção. Nem de ver alguém, me escondia debaixo da mesa. Tem mais. Outra coisa de que não sinto saudade: da palmatória com que a tia Araci me castigava, que eu tinha que aprender a escrever com a mão direita. Do gato que comeu meu canário de briga.

domingo, 16 de maio de 2010

Frustração

Ato I. Entrada, linda, majestosa, perfumada, sexy.
Ato II. Agradável, insinuante, sussurrante, sexy.
Ato III. Embriagada, sedutora, excitante, sexy.
Ato IV. Música, meia-luz, sofá, vestida, sexy.
Ato V. Nua, cicatrizes, gorduras, náuseas, baranga.
Ato finale. Noite, táxi, bêbado, dormir, solitário.

sábado, 1 de maio de 2010

O DEPOIMENTO

Devia ter uma lei pro pobre, seu doutor. Eu botei os direitos dele na justiça não foi pra ficar rica e nem bonita. Foi pra ver se eu boto uma porta na minha casa que está aberta e pra ajudar minha filha se formar, que o que ele mais pediu antes de morrer foi que eu formasse nossa filha caçula. As outras duas tão em São Paulo e não podem voltar porque não tem dinheiro da passagem, ainda tão pagando empréstimo que fizeram para cuidar da doença do pai. Só aprendi a trabalhar de enxada. Eu não conheço um a, mas conheço o que é alheio. Não quero nada que não seja meu. O que o doutor tá oferecendo é muito pouco por tantos anos de trabalho. Ele trabalhou foi doze anos sem uma folga sequer. Há dois anos que eu devo no mercado e não posso pagar. Quero esse dinheiro que é meu para pagar minhas contas, ajeitar minha casa e ajudar minha filha nos estudos. Tenha piedade, seu doutor, que um dia o prefeito vai precisar do pobre. Vai chegar o dia em que ele vai bater tanto no meu ombro que ele vai doer. A doença dele era triste. Uma noite ele chegou para mim e disse mulher eu tou com um caroço no pescoço e não sei o que é. E foi alteando, alteando até ficar do tamanho de uma laranja. E duro, era mesmo que tá batendo numa pedra de tão duro que era. Um dia ele furou com a ponta de uma presilha e o caroço murchou, sumiu, não sem antes encher um copo de um líquido purulento. Não demorou muito e ele voltou, dessa vez no corpo todo. E o maior no mesmo lugar do pescoço. O derradeiro sangue que ele tinha ele botou pelo pescoço. Era um tumor que crescia pra fora e não pra dentro. Um dia o caroço estourou e ele virou uma flor arregaçada. E parecia um bife batido com um buraco preto no meio. Minha filha passou semanas sem comer carne. Tinha dia que ele ia pra cidade enrolado em lençóis e banhado de sangue. Quando ele morreu tava dessa finura.

quinta-feira, 1 de abril de 2010

O POLÍTICO

(uma homenagem ao dia da mentira)
Perfeitamente limpo, o político subiu (seguro e sorridente) ao palanque acompanhado de sua comitiva de honra, alguns sorrisos, abraços, confidências auriculares e felicitações. A banda de música há muito já se postara, ora atenta ora sonolenta, num cantinho, à espera da senha para animar o circo. O político acenou com um gesto bastante conhecido (e cultivado) para a multidão que compareceu em peso na praça pública. Ajeitou o nó da gravata. Um conselheiro recomendou-lhe algo, outro ajustou a altura do microfone. Ele tossiu à maneira tradicional de início dos discursos. Uma ilustre personalidade achou que o sorriso do político não condizia com a ocasião. Sugeriu a utilização de um outro, mais plástico e envolvente. Ele ensaiou rapidamente alguns do repertório e quando optou por um que tirou de dentro do balaio, recebeu como aprovação um tapinha nas costas. Alguém perguntou sobre o efeito do desodorante, ele levantou o polegar direito. Tudo pronto. Começou a falar. A platéia se posicionou atenta, pacientemente. Sua voz vibrou forte e impunemente pela amplificadora. Visivelmente emocionado, prometeu melhorias. Por fim, acabou prometendo (a longo prazo) doar sua alma, os cabelos do cu e até vender a própria sogra. O povo aplaudiu leal e confiante, como sempre fora, ciente de que ele era o homem certo. Não se conteve e quis quebrar o protocolo, mas seus assessores o detiveram dizendo que seria mais vantajoso resguardar-se em suas energias para ocasiões mais futurosas. Foguetes rasgaram o ar. Comida e bebida foram servidas com fartura. Homens honrados e devidamente polidos, antes nunca vistos numa multidão, circulavam distribuindo sorrisos e receitas de bolo. O comício ocorria dentro do esperado. Elogios e apoios recíprocos. Promessas, muitas promessas. Um sucesso. O povo de barriga cheia, e maravilhado com aquela retórica, dava vivas, mostra de que ele mexera com os ânimos. O político, rica oratória, exibiu mais um sorriso e com ele toda a brancura de seus dentes. O indicador rijo ferindo o ar não deixava dúvida. Era o cara. Durante horas seguidas o povo ouviu-o com uma calma e serenidade surpreendentes. E quando o político preparou-se para, mais uma vez, apregoar uma receita de garantia de renda mínima para a população, esse mesmo povo, numa decisão e lucidez sem precedentes, subiu ao palanque, envolveu-lhe de chofre, e tirou-lhe (sem a menor piedade) aquilo que tinha de mais sórdido e hipócrita: a vida.

domingo, 28 de março de 2010

A LENDA DE ZÉ AMARO

aconteceu em Alto Sereno. Nego tinhoso. Vivia nas montanhas. Um defeito. Gostar do alheio, sem maldade, apenas por puro prazer. E nada de muito valor. Pequenos animais, que vendia na feira do Saco Grande. O dinheiro gastava com bebida e mulher. Um dia, não se soube exatamente a razão, deu a louca de roubar a potra tordilha do vizinho e quis também levar a mulher do outro na garupa. Mais fogosa que o animal, diziam as más línguas. O infeliz, queixoso, procurou a polícia. É aí que entra o Tenente Isidoro, primo distante do ofendido, delegado da cidadela. Fama de durão. Usava duas armas na cintura. Nos cabos, meia dúzia de marcas, almas que já despachara. Prendeu o cabra. Não houve resistência. Na cadeia, assim sem-vê-nem-pra-quê, o nego foi humilhado e torturado. O tenente, do alto de sua patente, tratava-o como quem trata um cão vira-lata, aos socos e pontapés. Pisava-lhe os cornos com as botas. O vazio furava com as esporas afiadas. O chicote lambia as costas nuas, sangue escorria pelo ralo. Cumprida a pena, Zé de Amaro foi solto. Na saída jurou nos olhos do tenente, e prometeu a si mesmo, que nunca mais, nem ele e nem ninguém, haveriam de lhe passar os ferros. Tenente Izidoro ouviu a tudo calado, ali parado, um tanto reflexivo, cofiando os bigodes, como que para espantar um súbito pressentimento. Voltou a roubar, só de birra, a tordilha e dessa vez levou a mulher do sujeito junto, a trouxa já pronta. O ofendido, ainda que envergonhado, foi se queixar de novo com a mais alta patente que, dessa vez, formou uma comitiva de homens de grossos calibres, ele à frente. Subiram a Serra dos Papagaios num jipe cara-alta, o tenente e mais quatro. Quando localizaram o esconderijo, apearam e se puseram a pé e se embrenharam e se arrastaram como lagartixas no meio das unhas de gato. Chegando bem perto, se espalharam. O tenente foi logo dando as ordens. Sabia que ele estava ali na toca, que saísse e se entregasse, era a polícia. Vinha voz de tudo quanto é lado. Zé de Amaro assuntou uma voz por vez, em cada canto, à procura daquela que representava maior ameaça. Quando identificou de que lado vinha, saiu de dentro da tapera com a 12 desembainhada e amolada dos dois lados. Foi rápido, nem deu tempo do homem engatilhar as armas. Furou bem no bucho, ali um pouquinho abaixo do umbigo. Ferido de morte, o tenente deixou que as armas caíssem e tombou sobre elas. Num último gesto, tentou, inutilmente, segurar os bofes com as mãos. A ferida aberta media pra mais de palmo. Quando os outros deram conta do sucedido, o nego já tinha escapulido, no milharal que atravessou somente se viu as folhas balançando. Mas à frente, rasgou com o peito a mata fechada para, enfim, mergulhar, alguns metros adiante, nas águas profundas do rio Canindé. No velório, botaram a aliança na boca do morto, pro assassino não fugir. Não adiantou muito não. Vieram soldados até da capital. Deram início à caçada. Ele, na mata ou no rio. Submerso no silêncio profundo e escuro, só levantava a cabeça para respirar. Numa das diligências, os homens atravessaram o rio e foram procurar o fugitivo na cidade vizinha. Naquele tempo, se não voltassem antes das dez, tinha que ser a nado. Zé de Amaro quando ouvia pisada de policia mergulhava e deslizava por entre juncos, canaranas e bananeiras. Fôlego de sete gatos. À noite, quando a polícia suspendia a busca, ele emergia das profundezas, dava algumas braçadas até a margem e de lá ganhava a mata de novo e se escondia na copa da primeira figueira que encontrava, onde dormia sossegado. Três meses se passaram. Morreu afogado, disseram. Botaram uma cuia, vela acesa dentro, no leito do rio. Seguiu correnteza. Se parasse, debaixo deveria estar o corpo. Mas não parou não, nem rodopiou um tantinho sequer. Continuaram com a busca por mais um mês. No final, sem verba e cansados, os homens deram por encerrada a campanha. A polícia voltou humilhada. Era o comentário só. Boa parte dos cabras deu baixa na farda. Outros rasgaram suas patentes.

E aconteceu que, uma coisinha de dias depois, Zé de Amaro ressurgiu assim do nada. Primeiro, foi apenas um vulto no alto da colina. Ninguém ligou ou levou a sério, julgaram que era brincadeira dos meninos pequenos, os primeiros que o avistaram. Quando os velhos confirmaram, disseram é assombração! E quando tudo era um alvoroço só, os dois pés de Zé de Amaro já estavam dentro da cidade. Sobranceiro, atravessou a rua principal caminhando calmamente. E, sem ser incomodado, somente parou quando chegou à porta do Fórum, quando então se colocou às ordens do doutor da lei.

Quem testemunhou viu que ele tinha o peito e a alma lavados.

terça-feira, 2 de março de 2010

ACERTO DE CONTA

Vergados o mindinho e o anelar. Mirou para imagem de Paulo com o médio e o indicador tesos. O polegar arriou sobre o indicador. Um buraco, com bordas em chumbo, fez-se. Viu fragmento de osso e, em seguida, da testa, uma bica; escarlate, entre os olhos, em direção ao nariz.
Pensou, neste instante, buscando a Smith & Wesson deixada por Paulo, que todas as pessoas são doentes.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

desAVENÇA

Como disse?
Falei que acabou.
Nunca, então, me amou?
Nunca.
Não podiam ter sido discretos?
Eu fui.
Ele, não.
Assassino, o senhor.
Adúltera, a senhora.
Tínhamos um pacto.
Que incluia não me expor ao rídiculo.
Eu não o fiz.
Ele, sim.
O senhor é um assassino.
A senhora, uma puta.
Precisava, ainda por cima, arrancar o pênis dele?
Ora, vá reclamar com Manelão.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

A PREGUIÇA

Deitado. Aquele músculo flácido sobre a bolsa escrotal. Inútil? M., ao seu lado, ressonava. Negara sugá-lo. Pediu então que o manipulasse. O dia cheio, a desculpa. Filha da puta!