domingo, 28 de março de 2010

A LENDA DE ZÉ AMARO

aconteceu em Alto Sereno. Nego tinhoso. Vivia nas montanhas. Um defeito. Gostar do alheio, sem maldade, apenas por puro prazer. E nada de muito valor. Pequenos animais, que vendia na feira do Saco Grande. O dinheiro gastava com bebida e mulher. Um dia, não se soube exatamente a razão, deu a louca de roubar a potra tordilha do vizinho e quis também levar a mulher do outro na garupa. Mais fogosa que o animal, diziam as más línguas. O infeliz, queixoso, procurou a polícia. É aí que entra o Tenente Isidoro, primo distante do ofendido, delegado da cidadela. Fama de durão. Usava duas armas na cintura. Nos cabos, meia dúzia de marcas, almas que já despachara. Prendeu o cabra. Não houve resistência. Na cadeia, assim sem-vê-nem-pra-quê, o nego foi humilhado e torturado. O tenente, do alto de sua patente, tratava-o como quem trata um cão vira-lata, aos socos e pontapés. Pisava-lhe os cornos com as botas. O vazio furava com as esporas afiadas. O chicote lambia as costas nuas, sangue escorria pelo ralo. Cumprida a pena, Zé de Amaro foi solto. Na saída jurou nos olhos do tenente, e prometeu a si mesmo, que nunca mais, nem ele e nem ninguém, haveriam de lhe passar os ferros. Tenente Izidoro ouviu a tudo calado, ali parado, um tanto reflexivo, cofiando os bigodes, como que para espantar um súbito pressentimento. Voltou a roubar, só de birra, a tordilha e dessa vez levou a mulher do sujeito junto, a trouxa já pronta. O ofendido, ainda que envergonhado, foi se queixar de novo com a mais alta patente que, dessa vez, formou uma comitiva de homens de grossos calibres, ele à frente. Subiram a Serra dos Papagaios num jipe cara-alta, o tenente e mais quatro. Quando localizaram o esconderijo, apearam e se puseram a pé e se embrenharam e se arrastaram como lagartixas no meio das unhas de gato. Chegando bem perto, se espalharam. O tenente foi logo dando as ordens. Sabia que ele estava ali na toca, que saísse e se entregasse, era a polícia. Vinha voz de tudo quanto é lado. Zé de Amaro assuntou uma voz por vez, em cada canto, à procura daquela que representava maior ameaça. Quando identificou de que lado vinha, saiu de dentro da tapera com a 12 desembainhada e amolada dos dois lados. Foi rápido, nem deu tempo do homem engatilhar as armas. Furou bem no bucho, ali um pouquinho abaixo do umbigo. Ferido de morte, o tenente deixou que as armas caíssem e tombou sobre elas. Num último gesto, tentou, inutilmente, segurar os bofes com as mãos. A ferida aberta media pra mais de palmo. Quando os outros deram conta do sucedido, o nego já tinha escapulido, no milharal que atravessou somente se viu as folhas balançando. Mas à frente, rasgou com o peito a mata fechada para, enfim, mergulhar, alguns metros adiante, nas águas profundas do rio Canindé. No velório, botaram a aliança na boca do morto, pro assassino não fugir. Não adiantou muito não. Vieram soldados até da capital. Deram início à caçada. Ele, na mata ou no rio. Submerso no silêncio profundo e escuro, só levantava a cabeça para respirar. Numa das diligências, os homens atravessaram o rio e foram procurar o fugitivo na cidade vizinha. Naquele tempo, se não voltassem antes das dez, tinha que ser a nado. Zé de Amaro quando ouvia pisada de policia mergulhava e deslizava por entre juncos, canaranas e bananeiras. Fôlego de sete gatos. À noite, quando a polícia suspendia a busca, ele emergia das profundezas, dava algumas braçadas até a margem e de lá ganhava a mata de novo e se escondia na copa da primeira figueira que encontrava, onde dormia sossegado. Três meses se passaram. Morreu afogado, disseram. Botaram uma cuia, vela acesa dentro, no leito do rio. Seguiu correnteza. Se parasse, debaixo deveria estar o corpo. Mas não parou não, nem rodopiou um tantinho sequer. Continuaram com a busca por mais um mês. No final, sem verba e cansados, os homens deram por encerrada a campanha. A polícia voltou humilhada. Era o comentário só. Boa parte dos cabras deu baixa na farda. Outros rasgaram suas patentes.

E aconteceu que, uma coisinha de dias depois, Zé de Amaro ressurgiu assim do nada. Primeiro, foi apenas um vulto no alto da colina. Ninguém ligou ou levou a sério, julgaram que era brincadeira dos meninos pequenos, os primeiros que o avistaram. Quando os velhos confirmaram, disseram é assombração! E quando tudo era um alvoroço só, os dois pés de Zé de Amaro já estavam dentro da cidade. Sobranceiro, atravessou a rua principal caminhando calmamente. E, sem ser incomodado, somente parou quando chegou à porta do Fórum, quando então se colocou às ordens do doutor da lei.

Quem testemunhou viu que ele tinha o peito e a alma lavados.

Um comentário:

f.wilson disse...

Gostei do conto. Esse tipo de história contada oralmente pelos mais velhos na boa tradição das pequenas cidades interioranas.