segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

EM BUSCA DE UM CERTO TOM ESCARLATE

“Morrer deve ser tão frio
Quanto na hora do parto”
Gilberto Gil: Aqui e Agora, in Refavela


Ainda hoje é possível vê-lo, em noites de lua cheia, com seu corpo jovem, macérrimo e naturalmente ágil, escalando a ponte metálica em perseguição, supõe-se, ao B. B. King — é perfeitamente audível Lucille executando The Other Night Blues. No princípio, socorriam-lhe bombeiros, policiais, pastores, padres... Mas simplesmente esvaía-se na escuridão. Com o tempo, deixaram-no em paz com B. B. King e Lucille.
Os amigos atribuem a sua desventura, como tem sido vulgar, a uma mulher: Carmen, colombiana e artesã, com quem seguiu rumo ao sul, queimando cannabis sativa e fazendo artes. Eu, aliás, encontrei-o em Brasília, no Moinho, e dele comprei uma xilogravura, que, ainda hoje, moldura minha sala. Aquele menino, outrora alegre, dinâmico, era triste, apático. Já não se lembrava de ninguém. Muito menos da cidade natal.
Tempos depois, soube do seu regresso. Disseram-me que estava abatido, irreconhecível. Devorava telas, que um mercador lhe dava, em busca de um certo tom escarlate. Buscou-a ao limite, incisando o pulso, encerrando a vida como uma quarta-feira de cinzas finda o carnaval por estas bandas.

sábado, 13 de dezembro de 2008

RE-SERTÃO

A viagem se fazia noites e dias.

- “Esta noite nunca mais”, balbuciou Serafim Vitalino.

- Ora, homem deixa de remorsos, disse Dora.

- Para lá de Currais de Pedra, apegados à Paraibuna.

- Bem pensado, é hora de chegar, engoliu o riso.

A distância parecia ter espelhos, a memória. Serafim Vitalino ouvia um assovio, melodia do luar do sertão na noite escura.

Escaramuças na caatinga, os cabras do Coronel José Pereira vingando a marca, o ultraje no retrato do pai, nos destroços da casa de fazenda.

“Meu pai, ultraje vingado”, falou o coronel por trás de anos

- Dona Maria e o seu ancestral paraibano, insinuou Dora.

- Deixa estar, memória.

A caatinga, o cangaço e os caminhos do sertão se abriam, mascaravam silêncio e travessia.

Dora ergue-se de seu silencio como se sorvesse irresoluto segredo. As marcas, o sangue, a travessia.

Serafim fluía em palavras que pareciam sair de anos.

- Durma, Serafim, disse Dora, ninando o seu sono. Homem barbado e feito.

Dora se deixava cair no sono, à deriva das horas e das lembranças.

- A caminho de Paraíbuna, prolatou a voz do pai.

- Seu Beno, homem de capricho. Dora parecia ler segredos da família.

- Escaramuças na caatinga, todo cuidado é pouco, meu filho.

- A caminho de Paraíbuna ouvia-se o clamor de olhos estios, anos sem conta.

Como se os dias parissem a memória. Estrada, a cidade e a pouca ruas. Casas de portas e janelas deslizando diante dos olhos telúricos, ávidos, curtidos de estradas e espera.

Serafim Vitalino e Dora dialogavam, às vezes silêncio, outra vezes poucas palavras. O tempo se entrelaçava às vidas e sinas na esteira de anos e sertões.

- É hora de chegar, murmurou Serafim Vitalino, os olhos miravam a tarde caindo.

- É hora, Dora deixou o murmúrio insolente, que parecia vir da avó, e o silencio rondava a noite.

Paraibuna uma miragem se escondia no cansaço. Serafim Vitalino colhia o ânimo nas falas, nas lembranças. A casa de fazenda, o curral, vaqueiros.

- Campeadores de sonhos dissimularam Dora.

- Campeadores de lembranças, idas e vindas do coronel à capital.

- Afrontas pondo fogo nas casas de inimigos.

Serafim Vitalino esperançava Paraibuna na memória, o sertão fujento, o olhar ávido e seco como o couro nos móveis esquecidos, flagelo, travessia.

De repente a madrugada e Paraibuna aos seus pés.

- Hora de chegar, Dora.

- Cavalgaremos nossas lembranças, Serafim.

- “Esta noite nunca mais”, ouvi de meu pai na rede de tucum , no alpendre. Estava cansado de campear lembranças.

Ao sol do dia a Paraibuna, a fazenda, o moinho, cenas perdidas no tempo. Pedaços de sertão, morros, caatingas se fundiam no horizonte. Agora que dúvidas tinham dessa paisagem que se exauria com rugir do tempo.