segunda-feira, 18 de agosto de 2014

TEMPO É O NOME DO SER

Era outono. A cidade acordou preguiçosa e com os olhos embaçados de quem se recusa a despertar. Pela janela observou a rua vazia e por alguns instantes a sensação do tempo parado despertou-lhe, além de curiosidade, a ideia de tirar algum proveito da situação. Nem cães vadios nem gatos enxotados se atreviam a sair dos esconderijos para remexer o lixo revirado sobre as calçadas, rescaldo da pantomima da noite anterior. Não fosse pela grossa fumaça que saía dos escapamentos os raros veículos que se lançavam passariam despercebidos, de tão silencioso o ronco dos motores. Imaginou que, congeladas até a alma, as pessoas, encurvadas, com os braços cruzados, e aprisionadas pelo medo de que os segredos pudessem ser revelados, recusavam a se mover e repetiam o mantra que lhes alimentava a esperança de um raio de luz que abrisse o azul no horizonte cinzento. Chovia uma chuva fina que, sem animar, não deprimia. Igual a que não consegue remover os entulhos deixados para trás e nem escorrer em busca de um leito para desaguar, mas que, imperceptivelmente, penetra o seio profundo da terra, irriga o ser encoberto e o desvela para a alegria da alma esquecida quando lhe remove os sucos, tal qual se revolve o chão batido da memória, tornando-a fofa, revirada e pronta para ser lavrada. Naquele momento quis uma chuva implacável e inoponível, que o arrastasse dali, livrando-o de todos os seus ais, desligando passado e futuro. Quis sim, como Kronos, negar o tempo, pô-lo a ferros. Sem memória e sem porvir. Regozijou-se com a ideia de que aprisionara para sempre o interlúdio instantâneo entre o que foi e o que virá. Desejou tanto eternizá-lo que sonhou com manhãs chuvosas nas quais era aquecido com um abraço forte, um beijo tórrido. Mas quando, a cada despertar, viu que eram iguais, as tardes cinzentas e o presente estéril, chorou copiosamente.