Era outono. A cidade acordou
preguiçosa e com os olhos embaçados de quem se recusa a despertar. Pela janela observou
a rua vazia e por alguns instantes a sensação do tempo parado
despertou-lhe, além de curiosidade, a ideia de tirar algum proveito da situação. Nem cães vadios nem gatos enxotados se atreviam a
sair dos esconderijos para remexer o lixo revirado sobre as calçadas, rescaldo
da pantomima da noite anterior. Não fosse pela grossa fumaça que saía dos
escapamentos os raros veículos que se lançavam passariam despercebidos, de tão
silencioso o ronco dos motores. Imaginou que, congeladas até a alma, as
pessoas, encurvadas, com os braços cruzados, e aprisionadas pelo medo de que os
segredos pudessem ser revelados, recusavam a se mover e repetiam o mantra
que lhes alimentava a esperança de um raio de luz que abrisse o azul no
horizonte cinzento. Chovia uma chuva fina que, sem animar, não deprimia. Igual
a que não consegue remover os entulhos deixados para trás e nem escorrer em
busca de um leito para desaguar, mas que, imperceptivelmente, penetra o seio
profundo da terra, irriga o ser encoberto e o desvela para a alegria da
alma esquecida quando lhe remove os sucos, tal qual se revolve o chão batido da
memória, tornando-a fofa, revirada e pronta para ser lavrada. Naquele momento
quis uma chuva implacável e inoponível, que o arrastasse dali, livrando-o de
todos os seus ais, desligando passado e futuro. Quis sim, como Kronos, negar o
tempo, pô-lo a ferros. Sem memória e sem porvir. Regozijou-se com a ideia de
que aprisionara para sempre o interlúdio instantâneo entre o que foi e o que
virá. Desejou tanto eternizá-lo que sonhou com manhãs chuvosas nas quais era
aquecido com um abraço forte, um beijo tórrido. Mas quando, a cada despertar,
viu que eram iguais, as tardes cinzentas e o presente estéril, chorou
copiosamente.
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