quarta-feira, 28 de julho de 2010

UM CLARÃO DENTRO DA NOITE

Teve um dia que a chuva veio mais forte, chuva de raios e trovoadas. É certo que naquela hora me lembrei das palavras de minha avó. O mundo não acabaria duas vezes do mesmo jeito. Se tivesse de acabar seria com fogo. Por isso mesmo, quando o tempo era de preparar a terra, evitava sentar na varanda, como sempre fazia no final de cada tarde. Nas montanhas, o céu ardia em chamas. Não contava pro pai, mas tinha medo do fogo avançar até nossa casa, queimar nossas vidas.
Que no dia daquela chuva meu medo foi muito maior eu não nego. Todos reunidos em torno da mesa de jacarandá sob a luz do velho lampião, cuja chama, embora já gasto o pavio, teimava em resistir ao sopro do implacável vento.
Todos fechados na alma para espantar o medo, menos meu pai. Eu não era o único que tremia. Meu dedo indicador da mão direita, aquele das trinta noites de febre sezão, ficava enrijado nessas horas, sinal de que a noite seria longa. Por certo, meu tio Antonio não viria para contar histórias de trancoso. Se tivesse de vir, antes ouviríamos o assobio. O que ouvimos não foi um assobio. Meu irmão achou que era um tropel de cavalos ao redor da casa. Minha mãe disse que as batidas eram na porta. Eu não disse palavra. Meu pai encerrou o assunto dizendo que eram apenas trovões. Pra completar, piscou de forma intermitente o olho esquerdo do meu irmão. Ocorria sempre que estava na iminência de sofrer um colapso. Meu pai percebeu quando minha mãe o procurou com o olhar. Mas antes que minha irmã caçula começasse a soluçar, ele, mais rápido que pensamento, abriu a porta (que fechou em seguida) e arremessou o velho machado para bem longe, além do pátio da casa. Pra atrair os raios, disse. Lembro-me agora que entre o abrir e o fechar o mundo lá fora se iluminou e o clarão revelou uma face serena. Quando disse não se preocupem, já passaram, aqui eles não entram mais, os pulmões de meu irmão pararam de chiar.
Um simples gesto aquele. Que alívio. E então olhamos pros olhos de nossa mãe, que nos confortava com um sorriso. Meu pai retomou seu lugar à mesa. Minha irmãzinha voltou a se entreter com a boneca de espiga de milho. Meu irmão, me provocando, fez girar sobre a mesa o seu pião.
Estávamos seguros, o mundo não ia se acabar.

6 comentários:

CESAR CRUZ disse...

Delicioso, familiar... excelente João. Parabéns.

Abraço
Cesar

Airton Sampaio disse...

Rapaz, o JL também é um bom cronista! Crônica intimista das boas esta, de belo título, afetiva mas resvalar pra pieguice. Se as sentenças dele forem assim (rs)...

Airton Sampaio disse...

... sem resvalar...

Natália Cassiano disse...

Que crônica aconchegante!
Senti a segurança que o pai passou aos filhos.
Muito boa

Abraços

Deva

J.L. Rocha do Nascimento disse...

Pois é, Deva e meu amigo Airton Sampaio, eu ainda acho que se trata de conto e não de crônica. Escrevi com esse sentimento, embora saiba que a fronteira entre eles, em muitos casos, é tênue. Ou há que nem ligue muito pra isso. Borges que o diga, pois escreveu contos que são verdadeiros ensaios, além de protagonizar dezenas deles.

Abs,

Airton Sampaio disse...

João, vc sabe mais q eu q não há hierarquia de gêneros e q conto e crônica (a não sei escrever) têm o mesmo tamanho, se tiverem a mesma qualidade. Mas no conto, mais q na crônica, o eu do escritor e do narrador se apartam, q o conto tem maior ficcionalidade. E vc tem se mostrado um bom cronista (bom contista sempre foi), coisa q no PI só há três: Rogério Newton, Cineas Santos (quando não dá uma de ambientalista) e José Maria Vasconcelos (talvez o melhor de todos). Danilo Damásio ERA uma esperança, mas virou mero regionalista político. E viva a crônica!!!