... pela manhã Leopoldo parava-o.
- Vai sair, vô?
- Para o traba...
Então despia-se do terno de linho e vestia a camisa de casimira, a calça cáqui, já surrada. Levava o neto ao jardim; mostrava-lhe como limpar as gaiolas; sentava-se na cadeira de balanço:: pitava dois cigarros e dormia. Sonhava com uma jovem loira, cabelos curtos, seios pequenos, olhos glaucos e lábios apetitosos, que o chamava de paizinho e gemia em seus braços.
- Lu!
- Sonhando, paizinho?
Vez em quando, um jogo de baralho com os poucos amigos, um passeio pelo Largo da Matriz. Lu começava a impacientar-se com sua presença reclamando da comida, da sujeira nos móveis, da desarrumação dos netos, enquanto ela trabalhava na casa.
À noite, sentava-se sofá e assistia a todos os programas da tv. Depois, ficava a arrastar os chinelos do quarto ao banheiro. Algumas vezes sentava-se à escrivaninha: pensava em escrever suas memórias, um romance sobre o bebê de proveta, um poema moderno. Pegava algumas folhas de papel, uma caneta, e escrevia uma carta para a jovem loira...
Numa manhã, olhando-se no espelho, notou que estava envelhecendo rapidamente: lábios trêmulos, rugas na testa, nos pômulos... Pensou que finalmente tinha alcançado a maturidade, podendo assim dedicar-se à literatura.
Lu implorou para que ele procurasse uma ocupação qualquer.
- Já trabalhei o tempo que devia.
Trecho do diário do Sr. X, membro da família:
12 de janeiro de 1978
Ele falou que quando lavava aos mãos para jantar, o polegar e o indicador da direita ficaram flutuando n'água; enxugando-as, o polegar e o indicador da esquerda ficaram entre a toalha.. Depois colocou os dedos num vidro, escondendo-o por trás das camisas, no guarda roupa.
Quando Lu falava de sua ociosidade, ele dirigia-se ao guarda-roupa, retirava o vidro, olhava os dedos em decomposição e se acalmava.
Nos primeiros dias depois do acidente tentou movimentar as mãos: quebrou o bibelô da mesinha de centro; escreveu um poema processo e pensou em levá-lo à Livraria Dilermatt, saber a opinião daqueles velhos da Academia de Letras, mas desistiu.
Leopoldo agora era quem limpava as gaiolas, acendia-lhe os cigarros.
Decerto que não possuía quatro dedos nas mãos, mas a mente funcionava. Então deixou de lado a ideia do romance, das memórias, do poema moderno, e começou a elaborar poemas somente com pontos de exclamação e interrogação, aspas e reticências. E para os que tivessem a ousadia de dizer que aquilo não era poesia, ele simplesmente citava Henri Lefebvre: Uma teoria nova não é jamais compreendida se se continua a julgá-la através de teorias antigas e de interpretações fundadas (à revelia daquele que reflete) sobre essas teorias antigas.
Comentário de A.I.D. à Cherloque, amigo da família:
- Ele tentou sair de casa, depois de nela permanecer por dois meses: eu vi, acredite, na saída, uma das pernas foi de encontro ao sofá, largando-se do corpo; procurou recolocá-la, não conseguiu...
Não mais saiu de casa.
Fragmento de uma carta de Lu à Joaquina, sua comadre:
... ontem, às 19 horas, como fazia todos os dias, ele foi ao banheiro, onde costuma permanecer meia hora sentado no vaso sanitário: dizia-nos que ali os poemas surgiam (...) Sabe, eu, até hoje, não entendi por que ele não mais se interessava pelos programas da tv; alegava que agora era um escritor e que tv é alienação (...) Depois de assistirmos a novela das sete, ficamos conversando na copa e nos lembramos dele. Leopoldo bateu na porta do banheiro, que cedeu sem muito esforço. Ele estava encostado na parede. No vaso sanitário, flutuando n'água, encontramos uma ameixa. Todos nós ficamos espantados com a apatia que deu nele. E o pior é que ele comera daquela fruta pela última vez três meses atrás...
Mais tarde, Dr. Lopes afirmou que aquilo não era ameixa, mas sim um cérebro.
* Conto, revisto, publicado originalmente na coletânea Um dedo de Prosa, em 1979.
* Conto, revisto, publicado originalmente na coletânea Um dedo de Prosa, em 1979.
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