Por falar em
malabarista, um de farol, no próximo sinal de trânsito. No lugar de bolas ou
bastonetes, limões. Pego meu meio taco de sinuca, que trago escondido no
casaco. Ando sempre de casaco. Por isso ninguém mexe comigo, pensam que se
trata de um louco, pelo fato de usar casaco nesse calorão. Eu sempre trabalho com três opções de golpes. Não
vou acertar na cabeça, já decidi. Seria fácil demais. As pernas, dos joelhos
para baixo serão o meu alvo. Se optar
pela parte superior das pernas, não vou bater com tanta força, quero apenas parti-las ao meio,
mas sem separá-las, no máximo deixarei igual a dois mocotós unidos apenas pelo
tecido subcutâneo, lado a lado, da mesma forma como ficam expostos no Box 14 do
mercado do Mafuá depois do meio-dia, as moscas varejeiras circulando em volta. Bem que eu poderia ser mais cruel. Se assim
resolver, o objetivo será acertar os tendões do calcanhar de Aquiles com força
suficiente apenas para rompê-los, sem abrir qualquer corte. Mas para isso, o
golpe tem que ser perfeito. Combinar força com precisão. A ideia me surgiu a
partir de uma história que me contaram do meu bisavô, esse sim um homem cruel,
segundo soube, pois não o conheci em vida. Mantinha sua propriedade
completamente cercada. Quando um animal, desses de pequeno porte como um
cabrito ou um leitão invadia os limites de seus domínios, aproveitando uma
brecha ou rompendo a cerca, ele mandava os agregados prender o bicho. Em
seguida, pegava o velho canivete Corneta e, com um golpe preciso, cortava os
tendões das patas traseiras do pobre animal. Maior precisão cirúrgica seria impossível,
de tão perfeito o talho que se abria. Nesse tempo ainda não se falava em
sociedade de proteção aos animais. O passo seguinte era jogá-lo por cima da
cerca de arame farpado e contemplar a dolorida cena. Para deambular, o cabrito
ou o capado ou o pequeno cordeiro, estropiado, tinha que apoiar todo o peso do
corpo nas patas dianteiras. As traseiras, essas apenas se arrastavam com muito
esforço. Tanta era a dor que, à medida que lentamente se arrastava, um rastro
de mijo irrigava o chão estorricado. Era de dar pena, segundo dizem. Sei que é
cruel demais, mas foi pensando nessa imagem que eu mudei os planos novamente,
assim como abandonei a ideia inicial de arremessar para longe a cabeça do
malabarista, e decidi acertá-lo com o taco nos tendões e com um desafio a mais:
o serviço tinha que ser limpo, sem corte, sem sangue. Além do que, queria
também satisfazer uma curiosidade. Saber se era tão bom malabarista a ponto de
se manter em pé e continuar a executar o seu número até que o sinal verde
abrisse.
Fiquei
de tocaia. Quando o sinal vermelho acendeu e ele começou a jogar pra cima
aqueles limões murchos, eu me aproximei rapidamente por trás e desferi dois
golpes sequenciados, quase instantâneos, um para cada tendão. Nem deu tempo de
o malabarista tentar se apoiar num deles e se defender. Foi ao chão e
espatifou-se como um tomate podre. Os limões rolaram em direção à sarjeta. O
trânsito foi interrompido. Na confusão, sai dali rapidamente. Um caprino tem
mais fibra na têmpera do que um ser humano, conclui com uma serenidade de fazer
inveja.
Um comentário:
Faz tempo que eu não leio um conto forte assim, a la Rubem Fonseca e Ariosto Augusto de Oliveira. Parabéns, meu amigo magistrado! Saudades desse velho amigo.
Abço grande,
Cesar, de SP
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