Peço uma cerveja. Quente. Só tem copo
descartável, diz o garçom com aura de poeta. No primeiro gole, desisto. Peço um
uísque. Não tem gelo, diz o barman, agora com mais aura de garçom do que de
poeta. Fazer o quê? Bebo de um gole só. Puro álcool. Outro cavalo paraguaio, eu
peço. O garçom, com o olhar de reprovação e postura de proprietário do estabelecimento,
diz que estou enganado, o uísque é legítimo, selado, e que se eu quiser tenho
que comprar a ficha antes. Não esquenta, cavalo paraguaio é um poema que
estou trabalhando.
BR-3, o nome da banda, toca Voodoo Child. O vocalista anuncia que o
microfone está à disposição de todos. Os bardos fazem fila, começam a declamar.
O rio é o mote. Uma poetisa com os cabelos desgrenhados agarra o microfone e eu
temo pela sua sorte. Gesticulando-se de forma desordenada, tal com uma aranha
peçonhenta bêbada, tentáculos para todos os lados, as pernas parecendo duas
palafitas movendo-se em areia movediça. Começa a berrar: preciso urgentemente
fazer um poema sobre o rio de minha cidade. Na estrofe seguinte, troca a cidade pela aldeia. O pobre do guitarrista faz malabarismos para
acompanhar o ritmo ora estridente ora sonolento. Repete os mesmos versos até
cansar. Ao final, joga o microfone para um dos lados e se despede diante de
efusivos aplausos. Dirige-se a uma mesa, onde lhe aguarda um grupo animado de
jovens, um deles escreve um poema num rolo de folhas duplas de papel higiênico.
No meio do caminho ela arranca um copo de cerveja das mãos de um, que apenas
olha. Mais à frente, tropeça numa garrafa jogada pelo chão, quase cai, mas
consegue sentar-se num banquinho de madeira e grita: garçom, mais uma, que eu
preciso escrever urgentemente um poema sobre o rio da minha cidade.
Já vou pra quarta dose. E parece que
ganhei a simpatia do garçom-poeta. Mandou comprar um pacote de gelo e água de
coco, mas me fez prometer que tomaria pelo menos mais 03 doses.
O tempo passa. Os poetas continuam se
revezando. O tema de sempre. Tem um que canta a beleza do rio coberto de
aguapés. Ainda bem que não tem nenhum ambientalista por perto. Deixem o rio em
paz, resmungo. Peço uma caneta e um
pedaço de papel e escrevo:
Cavalo paraguaioDeus!, Deus!, por que me persegues?
Por que não me dissestes que eu nasceria para a morte?
Por que me destes um coração fraco?
Por que tenho que me deitar neste leito de Procusto?
Meu Deus! Isso não é um poema, é um pedido de
socorro, reflito. E o que é que o dna do cavalo tem a ver com a ira divina,
com a frágil condição humana? Nunca vou ser um poeta, concluo desolado.
A oitava dose eu tomo com gelo e água de
coco. O dono do bar, poeta nas horas vagas como ele mesmo diz, e dublê de
garçom aos finais de semana, agora é um poço sem fundo de sorrisos para comigo.
Também, conseguiu recuperar o investimento e já tá no lucro.
Lá pelas tantas, me faz um convite. Quer
que escrevamos um poema a quatro mãos. Lisonjeado, agradeço e gentilmente
recuso. Percebo que não gostou e insiste. Apelo para o seu instinto
patrimonialista e digo-lhe que ainda tenho reserva para mais duas doses,
desde que ele guarde segredo do que vou dizer e não se ofenda. Pode falar, ele
diz. Não sou poeta, sou contista, digo baixinho, olhando firme nos seus olhos,
certificando-me, antes, de que não há ninguém por perto. A reação foi imediata.
Deu dois passos para trás, quase cai. Seus olhos cospem fogo. Por um momento
pensei que ele iria acionar os seguranças ou resolver a parada com as próprias
mãos. Comecei a suar frio. À minha volta, pareceu-me que todos me olhavam com
ar de rejeição. Deve ser o efeito do cavalo paraguaio, pensei.
De repente, para minha surpresa, meu
interlocutor interrompe-me os devaneios, dizendo: tudo bem, você é um bom
cliente. Sirvo-te mais duas doses, sem gelo e sem água de coco, mas com uma
condição: nunca mais me volte aqui, entendeu?
Ao final da décima dose, me sentindo um
estranho no ninho, saí dali como entrei, sem ser notado, e decidido a escrever
este conto.
2 comentários:
João Luiz, como sempre, com seus contos criativos e inteligentes! É necessário esclarecer aqui que, além de contista, é um excelente poeta! Parabéns!
Parabéns, João Luiz! Conto envolvente, redondo, desceu macio como um "cavalo" verdadeio (12 anos!). Veloso
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