domingo, 30 de setembro de 2012

A REDENÇÃO DE SÍSIFO

(esta é uma obra de ficção e, portanto, não resolve o problema do paradigma do fundamento sem fundo)

Como anda a capacidade de perdoar? Sim, eu O desafiei, o que foi compreendido e interpretado como uma ofensa. E aí, porque não pôde se conter, revelou-se a face cruel e vingativa. Foi há tanto tempo atrás. Mesmo assim, Tua ira não se aplaca. Não é exatamente o peso que aflige. O que esgarça a alma, o que atormenta, é o fato de, a cada recomeço, ter que relembrar a triste existência. Nisso, tenho que reconhecer, Você foi perfeito. Tivesse arrancado a memória ou a capacidade de compreender os sentidos, a história já teria tido sim um desfecho definitivo. Cansei-me, essa é a verdade, se é que há uma além daquela absoluta.  E hoje, sobretudo hoje, acordei com um ar de enfado que, acredito, jamais encontrará outro que o rivalize. Chega.  Pra que carregar o fardo até o topo, se, antecipadamente, já sei que sempre terei que voltar ao ponto de partida? Se a cada retorno, mais um degrau na escala da degradação humana foi acrescentado?  Se, no final das contas, nada, mas nada mesmo, faz sentido. Sem falar que aqui, deste lado ocidental, tudo não passa de um faz-de-conta, quando não é uma comédia. Essa a realidade presente, a mesma de ontem, a que se repetirá. Afinal, porque resistimos? Todo esse esforço, desde sempre, atende uma única razão prática: manter-se vivo, estar-aí, ainda que o custo, altíssimo, no meu caso, seja a perda da dignidade. Terá valido a pena? De que adianta, se no derradeiro dia o encontro que vimos adiando será inevitável?  Tudo é inútil. E na parte de cima das coisas inúteis nem é necessário dizer quem está à frente. Sejamos realistas.  Já nascemos condenados à morte, alguém já disse, meio que filosofando.  Recuso-me a partir de agora. Quero a finitude de volta. Cheguei ao limite. Aqui eu paro. Vou descer. Mas antes que me esqueça, obrigo-me a dizer: nada me tira da cabeça a ideia de que Você Falhou. Eis aqui a prova quase morta disso. Que Hermes tenha piedade e me entregue nas mãos de Hades.

6 comentários:

Sérgio Costa Lopes Júnior disse...

Como disse Camus (ou pelo menos me disseram que ele disse, já que ainda não li “O mito de Sísifo”), “É preciso imaginar Sísifo feliz”.
Acrescento que é preciso Sísifo se imaginar feliz. Todos temos nossas pedras que empurramos morro acima para despencarem com uma força misteriosa. Pode ser um amor que nunca vinga, uma prateleira que nunca esvazia ou uma casa que nunca fica limpa.
É fundamental que estejamos felizes (ou pelo menos que nos imaginemos felizes) com a subida, sem nos preocuparmos com o ápice nunca atingido. Aproveitemos o momento em que a pedra desce, sem que precisemos suportar-lhe o peso, para descansar os músculos a fim de recomeçar a subida na próxima vez.
Desistir? Eu já tentei desistir inúmeras vezes e – deixa eu te contar – há uma forma ainda mais misteriosa do que a que derruba a pedra e ela me faz insistir. Não tenho escolha, é isto ou viver na reflexão sobre a miséria humana, daí desembocando na depressão ou loucura, em uma amálgama de niilismo, dadaísmo, existencialismo e tantos quantos outros “ismos” quiserem.
“Tudo é inútil”, disseste bem, mas serve pra passar o tempo. E é inútil tentar resistir ou desistir: há um ouroboro enrolado no pescoço.

Sérgio Costa Lopes Júnior disse...

Só corrigindo:
"há uma força ainda mais misteriosa do que a que derruba a pedra"
("força", não "forma")

jl rocha do nascimento disse...

É verdade,Sérgio, existe uma força mistoriosa sim. É isso que nos move, às vezes até mesmo por inércia, rsrs. Eu sei disse. Agora, o conto não tem maiores pretensões. Minha intenção foi somente a de trabalhar os dualismos próprios da metafísica clássica. Resistir/desisitir; finitude/infinitude; utilidade/inutilidade; bem/mal etc. E a ideia central foi, ficcionalmente, registre-se, libertar Sísifo do castigo do Deus cruel e vingativo, pois acho que o ficcionista tem essa liberdade. A propósito disso, mesmo sabendo que a liberdade (a de Sísifo e não a do autor) representa um paradoxo, afinal foi por resistir a ela que ele O desafiou. Numa outra leitura, a insurreição pode também representar mais um desafio, ainda que o último.

Sérgio Costa Lopes Júnior disse...

Rebelar-se e resignar-se são também - de forma ampliada - trabalhos de Sísifo.
Muito boa sua prosa. Que tal pegar outras figuras mitológicas e imaginar-lhes se rebelando contra o destino? Prometeu matando a águia, Atlas largando o globo, etc.?
A propósito, há um livro muito bom chamado "A Revolta de Atlas" mas não trata de mitologia (o Atlas do título é uma metáfora). Podia usar este título.
Aguardo novidades!

jlrnascimento disse...

Gostei das sugestões, sobretudo a de Atlas largando o globo. Não sei bem porque, mas me lembrei de uma metáfora do JANGADA DE PEDRA, do Saramago, romance em que ele imagina uma fissura inicial na Peníssula Ibérita, que se abrindo, que se aprofunda até o ponto de Portugalse despreender, se separar do continente e sair vagando a esmo no mar aberto, o que também lembra o paradoxo do dilema português já trabalhado por Fernando Pessoa.

Anônimo disse...

Sem entrar no embate filosófico acima, concordo com vc Sérgio. Nós é que decidimos como vamos viver enquanto empurramos a pedra, isso reflete a vida que teremos: se vamos viver na "depressão ou loucura" pensando na condição da existência humana ou tentar viver de uma forma prazerosa e agradável enquanto esperamos o fim inevitável.
Esse comentário, que contradiz a ideia do conto, não tira o mérito do nobre contista, que sempre nos presenteia com belas estórias que nos levam a refletir sobre a vida.
Gostei muito do conto, me fez buscar mais um pouco de aprendizado sobre a mitologia grega.