domingo, 23 de maio de 2010

Infância

Duas ou mais coisas de que sinto saudade: do único vialejo que ganhei, presente não sei de quem; perdi-o antes mesmo de aprender a tocá-lo. Minha caneta esferográfica de quatro cores, o Jeep cara alta que encarava qualquer rodagem. O Fenemê do Eron comia poeira, os outros aparentados a morrer de inveja. Ah, minha fazenda de gado feito de ponta de chifre de boi. Meu cavalo alazão de talo de carnaúba com suas orelhas empinadas e atentas a tudo, arisco que só, o rabo levemente tosado dava mais elegância ao trote garboso.

Minhas conversas de final de tarde com meu primo Raimundo. Debaixo do pé de figueira, montados a cavalo, e sob o olhar atento da tia Araci, discutíamos quem tinha mais cabeça de gado zebu, nas suas contas era sempre ele.

De acordar cedinho com o assobio de meu pai ordenhando a vaca parida, o bezerro, arreado, queria mais, não deixava quieto o rabo. De beber leite mugido, ainda morninho, no copo de alumínio. Da janela eu ficava esperando, os olhos remelentos. Um bico do peito dava pra encher um balde. No meu copo, a espuma ficava por cima. Eu bebia de um gole só, meu pai se ria com os bigodes brancos que marcavam meus beiços. Dos pigarros de minha avó Luisa e sua asma, nas noites de frio, aquilo só me doía e me deixava insone. Dos peitos de Vitória balançando quando pilava arroz, dos banhos quando o riacho estava cheio. Eu mergulhava para mexer com as vergonhas da prima Júlia, deixando boquiabertos os outros; os mais novos, a mão na boca, em vão, tentavam esconder o riso.

Das arapucas de pegar passarinho. De chupar manga de fiapo, me lambuzar com mel de sanharó, arrancar cabeça-de-frade pra tia Julita fazer cocada, bolo de forno, comer umbu verdadeiro, tirar água do poço, atirar em labigó, catar oiticica na beira do riacho para fazer sabão, de comer maria-preta, das espingardas de talo de bananeira.

Do que eu não gostava: beber emulsão Scott e tomar injeção. Nem de ver alguém, me escondia debaixo da mesa. Tem mais. Outra coisa de que não sinto saudade: da palmatória com que a tia Araci me castigava, que eu tinha que aprender a escrever com a mão direita. Do gato que comeu meu canário de briga.

2 comentários:

CESAR CRUZ disse...

Gostoso, para mim, um urbanoide paulistano, ler essas passagens rurais, campestres.

Gostei muito!

Abraços aos amigos
Cesar

Zezê disse...

Por que será que o nosso tempo de criança é sempre melhor que o dos outros? Acho que no fim das contas é o tamanho das responsabilidades de cada um que denota a fartura de saudades da infância. Muito estiloso, João Luiz!