Quando entro, seus olhos estão voltados para o teto. Não é azul. É branco-neve. O que ela vê? Nuvens sobre um céu azul!
Aproximo-me. Digo oi. Desvia olhar, assustada. Olha-me fixamente. Não pisca. Por alguns segundos, deixo que aqueles olhinhos miúdos penetrem minha alma. Espero uma reação, uma palavra. Percebo o esforço pra me reconhecer. Mas, somente me olha. Não há brilho nos olhos, cujo olhar é opaco, vago, perdido em algum lugar longe dali, muito longe. Em que mundo vive agora? O corpo guardado embaixo de lençóis. São muitos os lençóis. Escondem a fragilidade e toda uma vida de entrega e dedicação. Quase que já não existe corpo debaixo dos lençóis. Quase não existe mais vida.
Depois de muito me olhar, com um esforço supremo, balbucia alguma coisa. Aproximo-me mais.
É a minha rosa? (Sempre me chamou assim. Diz que sou o filho mais bonito do mundo).
Tento me segurar.
Pergunto como ela está.
Responde que está viva
Digo que bom que a senhora está viva.
Ela volta a fixar os olhos no teto branco e frio.
Uma lágrima escorrega pelo canto do olho, que a mão trêmula tenta enxugar.
O braço direito começa a tremer.
Pergunto se sente frio. Com dificuldade, balança com a cabeça e sussurra baixinho. Pelo movimento dos lábios percebo que diz que sim.
Mas não está tão frio assim, penso.
Fico preocupado e chamo a enfermeira que verifica a pressão, o batimento cardíaco, os sinais vitais.
Tá tudo bem, deve ser a emoção.
Eu olho pra ele, os olhos parecem nadar. Mas não diz palavra. Com o auxílio da bengala, ensaia se levantar da cadeira e se aproximar, eu peço que ele fique sentado, não se levante.
Quando a enfermeira sai, eu me aproximo novamente.
Quem é você?
Seu filho, a rosa mais bonita do seu jardim.
E os velhinhos?
Que velhinhos?
Eles já comeram?
Sim, já estão alimentados.
Começo a acariciar seus cabelos e brinco. Digo que estão muito brancos, parecem novelos de algodão e que precisa pintá-los.
É verdade, ela diz. Em seguida, ensaia um sorriso que, de repente, interrompe.
Gosta de cafuné?
Gosto, mas me fale a verdade, os velhinhos já morreram?
Que velhinhos?
Aqueles velhinhos. Eu prometi a eles que não morreriam. Não antes de...
Não morrerão, tranqüilizo.
Ela volta o olhar pro teto cinza-escuro.
As nuvens estão carregadas, vai chover hoje!
Ele sofre calado. Será que é de arrependimento?
4 comentários:
JL, uma das funções da literatura é essa mesma, e muito nobre: nos ajuda a aguentar os trancos, nada fáceis, da vida, e nos impede de enlouquecer, como Ismália enlouqueceu, talvez porque não escrevesse. Faz tempo que eu engasgo, mas a lágrima não descia. Sua crônica fez que ela me viesse. Não estou curado, mas melhorei um pouco. Grande texto, pena que não ficcional!
Pois é, Airton, este, de fato, não é ficcional. Infelizmente.
Fernando Pessoa diz que "o poeta é um fingidor (...) que chega a fingir que é dor a dor que deveras sente" e, por extensão, o autor de poemas em prosa seria também. Discordo!
O escritor é no máximo um exagerado, que transforma uma saudade de alguém que viajou no fim de semana em um texto sobre a incompletude do ser. Ou a vontade de tomar sorvete de pistache em um texto sobre a impossibilidade da satisfação dos desejos do homem moderno. Há exagero mas não fingimento.
Muito infelizmente este não parece ser o presente caso. Ao contrário, aqui parece que o autor se conteve ou não conseguiu colocar no papel todo o sentimento. Há uma tentativa inglória de transformar lágrimas que se negam a sair em palavras. É frustrada a tentativa de amenizar a dor, o "pleurer par la plume" não funcionou como deveria.
O texto traz ainda uma realidade que eu desconheço, me mostra uma dor que jamais senti, dor com outro nome e sobrenome igual ao meu (que espero não sentir tão cedo). Sentir esta dor através de outrem já é doloroso. Dito de outra forma, sentir a dor de ver doer em alguém a quem queremos bem já é quase insuportável. É uma dor maior que a gente.
Seja estando junto ou lendo o texto, a gente sofre junto. E entende coisa que antes não percebia, amadurece na epifania que surge no abraço fraterno ou nas palavras na tela.
Conte comigo para o que precisar. Forte abraço.
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