domingo, 16 de janeiro de 2011

A OUTRA

Não havia córrego de águas claras. Um esgoto de águas servidas, a céu aberto, era o que tinha. Desembocava numa galeria, centenas de metros depois. Ali também se despejavam os dejetos do pavilhão; noutro bueiro, os resíduos da fábrica de sabão. Era, assim, cortada ao meio por uma galeria não concluída. Aliás, dizer que se tratava de galeria não é exato: uma aluvião de águas sujas e fedidas. Necessitava-se fôlego de sete gatos para atravessar para o outro lado, tanta a podridão.

Dividia-se entre dois quarteirões (a palavra quadras não corria, àquela época), que também demarcavam territórios, separando os meninos em duas turmas, os da parte de baixo e os da parte de cima. Nas casas dos da parte de cima tinha mosaico na sala, na copa e na cozinha; nos quartos, taco; picapes Ford ou Rural-Willis na garagem. Era de ladrilho o piso das casas dos pais dos meninos da parte de baixo. Carro na garagem só o Jeep do Seu Viriato, que nem dele era, mas do governo, e o Fenemê do Seu Salvador, que usava para fazer carregamento de areia. Filó, o motorista. O momento certo era quando ele engatava a segunda e da segunda não saía, que era subida. Quando passava em frente à casa do Zezinho, a gente se dependurava na traseira da carroceria. Antes de dobrar a esquina, pulávamos fora.

Na divisa entre os dois quarteirões, bem na esquina, do lado esquerdo de quem sobe, morava um menino, o Cabeludo. Ele também se dividia entre os de cima e os de baixo. Sua relação com a parte de baixo era porque era meu primo, ainda que distante, e também porque ali morava Milinda, os quadris mais bonitos que já vi. Mas esses não eram os únicos motivos, logo descobri. Descer para comer sirigoela madura no pé da casa de dona Albina era outro. Uma senhora gorda e generosa, ela. Toda vez que os filhos, os gêmeos Antonio e José, se envolviam numa briga, sua barriga começava a inchar, conforme dizia, enquanto batia com as mãos num dos lados, chamando a atenção dos vizinhos. O Cabeludo, assim como tantos, eu incluído, também descia para curiar a Bárbara (morena de pele azeitada, já coroa, que morava sozinha) no banheiro feito de talo de babaçu que ficava no fundo do quintal da casa, sempre às seis da tarde. Desconfiávamos, só pelo jeito de se ensaboar, que ela sabia que fazíamos fila para vê-la. Parecia sentir um prazer sem limites. Outro divertimento era olhar pelo buraco da parede sem muro e ver a irmã do Zezinho se trocando, os peitos já grandes, as carnes firmes, o sexo com os pendões enrolados. Mas não era de graça não, pagávamos ao Zezinho. Não em dinheiro, que a gente não tinha, mas em outras moedas, como time de botão, carteiras de cigarros vazias, castanhas, carrinhos de rolimãs e petecas.

Ainda sobre o Cabeludo. Quando a briga era pra valer, ele ficava do lado dos meninos da parte de cima; quando não, não se envolvia, com medo de pegar cocorote de ambos os lados. Nós, da parte de baixo, tínhamos um grupo musical e um time de futebol. As traves eram formadas com duas bandas de tijolo. Não havia problema de grama, pois o capim comia solto. Jogávamos com os pés descalços. Ao final do jogo, nossa diversão era esperar Seu Benezin, vigia do Colégio, de volta a casa, ao entardecer. Tinha uma bicicleta novinha em folha, com paralamas nos pneus, uma flâmula do Fogão tremulando no guidão. Mesmo assim, ao se deparar com uma poça d’água enlameada no meio do caminho, ele freava, desmontava e, firme com os braços, suspendia a bichinha até atravessar a poça, tudo para não sujar os pneus da Gulliver. A gente se ria, de forma tímida e silenciosa, que ele era zangado, capaz de nos ameaçar com o facão Colinos, sempre atravessado na cintura.

O líder da banda musical era o Fontoura, a quem a gente chamava carinhosamente de Xarope, filho de Seu Canuto com dona Teresinha, que diziam ser macumbeira. Se verdade ou não, nunca se soube. Mas uma coisa é certa: raramente tomava banho, tinha os cabelos sempre emaranhados, usava um cachimbo atravessado na boca e deixava o ar carregado. Sentíamos um temor reverencial, medo de virar sapo. Sua casa estava sempre às escuras. E havia um quarto cuja porta se mantinha o tempo todo fechada e de onde escapava um gemido, nas primeiras horas da noite, que diziam ser da irmã do Fontoura, que se perdeu na vida e, como castigo, os pais a condenaram a viver trancada. Nenhum menino chegou a vê-la. Fontoura era o vocalista e também tocava bateria, único instrumento da banda, feita de latas de querosene vazias que a gente pegava na Usina. O repertório se dividia entre jovem guarda e música de cabaré, que não conhecíamos nem ouvíamos outro tipo.

Jacó era o craque do time e escalava os outros pra jogar. Lindomar, o mais molenga de todos, sempre ficava no gol, a menos que fosse o dono da bola. Suas orelhas viviam sempre vermelhas, de tanta caçoleta. Jacó dormia com uma touca na cabeça, segredo que poucos sabiam. Era alisar os cabelos e fazer bonito nas festas nos finais de semana, lá para as bandas das Ilhotas. Eu não era bom de futebol nem sabia cantar. Mas tinha um primo rico, o Cabeludo, que às vezes descia com sua bola dente de leite, sem um remendo sequer. Mais de uma coisa eu me orgulhava: era o maior colecionador de revistas em quadrinhos, principalmente de faroeste e de Tarzan, que não gostava do Mandrake. E também tinha o melhor time de botão, cuidadosamente guardado num frasco usado de remédio. Para manter-lhes o brilho, conservava-os em talco Cashmere Bouquet, que pegava escondido na cômoda do quarto da mãe. Também tinha o Edu, que não sabia jogar futebol, não encostava perto das meninas, falava sempre com a mão na boca, nunca viu uma mulher nua, nem mesmo por um buraco na parede ou em fotografia de revista de mulher pelada, mas sabia desenhar muito bem. Foi com ele que aprendi desenhar o cavalo do Zorro.

Tinha a Lucinha, minha primeira namorada. Quando terminamos, prometi que um dia a gente reataria, quando eu estivesse mais crescido e usasse barba e bigode ou então quando ganhasse uma bicicleta, o que primeiro ocorresse. E não é que muito tempo depois ela veio cobrar-me o cumprimento da promessa e, para avivar minha memória, levou a Carminha, sua amiga, que a tudo testemunhara à época? Não pude cumprir a jura, por uma série de razões que não convém mencionar.

Chegou um dia que tivemos de mudar. Morávamos de favor em uma casa de minha avó materna. Quando ela precisou, tivemos que sair dali para uma bem menor e de paredes de taipa, na Vermelha. Na mudança, meu maior cuidado era com o baú de revistas em quadrinhos. O meu primo Cabeludo veio pessoalmente da parte de cima para ajudar, na esperança de ver a minha coleção completa de Korak, o filho de Tarzan. Mostrei só algumas, pois de todas era a que eu tinha mais ciúme. Aliás, todos os meninos da parte de baixo tratavam o meu baú como se um tesouro fosse, e realmente era, um tesouro de revistas em quadrinhos que somente eu, dos meninos de baixo, tinha. Os outros não gostavam de ler, preferiam a bola ou peteca (nunca me acostumei a chamar bola de gude).

Tempos depois, nova mudança, até que um dia meu pai, cansado de tanto pagar aluguel, conseguiu financiar a compra de uma pequena casa, num bairro da periferia. Nunca mais voltei àquela rua, que não existe mais, a não ser como uma lembrança viva na minha memória de menino. Depois que concluíram a galeria, passou o calçamento, mais depois o asfalto, as figueiras foram derrubadas, tornou-se ela um corredor de tráfego. Seu Benezin morreu. Do meu tempo, poucos ali ainda residem. A maioria das residências virou estabelecimentos comerciais ou clínicas médicas. Do meu primo Cabeludo nunca mais uma notícia, a não ser a de que ficou careca e se mudou para outro Estado. O Jacó, eu soube, foi vítima de um acidente de carro, perdeu massa encefálica e hoje anda como se fosse um zumbi e não tira mais a touca da cabeça. O Edu, que passou um tempo internado no Meduna, continua desenhando os mesmos heróis e ainda não realizou o seu maior sonho: descobrir a identidade secreta do Zorro. Um dia encontrei com ele no centro da cidade. Não me reconheceu. Imagino que até hoje ele ainda não viu as carnes de uma mulher tremerem. Quanto aos irmãos gêmeos, um deles se tornou jogador de futebol profissional, o outro é engenheiro mecânico. A minha primeira namorada nunca se casou. Ainda espera que eu cumpra a promessa. Dona Albina é umas das poucas que resistem no lugar, mas a barriga não incha mais.

Bem ali perto dela, no Barrocão, uma outra rua. Imortalizada na canção.

Um comentário:

Airton Sampaio disse...

JL, esta crônica está uma delícia!