terça-feira, 29 de setembro de 2009

MARGARIDAS VERMELHAS

Vim assim que soube. Amigo de infância. Logo que cheguei, aquele constrangimento. Aproximei-me para vê-lo mais de perto. Fui interrompido por um acesso de tosse. Não conseguia parar. Meus olhos lacrimejavam, faltou-me o fôlego. Passada a crise, percebi que as velhas senhoras tinham parado de rezar o terço. À minha volta, todos me olhavam fixamente, com ar de censura ou de advertência. Ou era de comiseração? Não esperei a resposta. Sai dali imediatamente. De fininho e envergonhado. E adivinha o que estou fazendo agora, aqui do lado de fora que está mais ventilado e de onde a muito custo posso identificar a quantas trezenas vão de ave-marias? Prometeu parar. Eu também, diversas vezes. O máximo que consegui, numa delas, três meses. Por esse tempo eu ficava, como se costuma dizer, fumando nas calças. Carcinoma bronco-pulmonar. Quando soube, para melhorar a estima, ainda quis fumar um, o infeliz. Na manhã de hoje, quando acordou, contou-me sua mulher, estranhamente não sofreu. Olhou pro firmamento e fez um comentário. Nesse momento algumas nuvens tingiam de negro o azul do céu. Preferia não saber, foram suas últimas palavras.

Foi por causa dele que comecei, ainda no ginasial. Por pouco não me livrei. Tinha dificuldade, engolia muita fumaça. Ele insistiu e o fez com um argumento infalível. Ajuda a conquistar uma garota. Quando a gente está sem assunto. Serve pra quebrar o gelo, distrair. Enquanto traga, vai pensando no que falar.

Mas minha paixão inicial foi mesmo pelas embalagens. Quando criança, lá pelos oito ou dez, tinha um vizinho que gostava de Minister. Feito para o homem que sabe o que quer. Certa vez ele me deu um maço vazio. Comecei minha coleção. A gente transformava em notas. Isso depois de um cuidadoso trabalho. O jogo era desfazer a embalagem sem rasgar ou danificar. Primeiro descolava. Depois dobrava as laterais em direção à parte interna, mais ao menos na largura do dedo mindinho. Em seguida, com o polegar, e a mesma paciência de mãe ao passar a camisa de cambraia de pai, pressionava em ambos os lados para vincar bem. Ao final, dobrava ao meio, como se faz com as cédulas. Na bolsa de apostas entre os meninos da rua, Minister valia mais que Hollywood, cinco vezes uma Continental com filtro. A de menor valor era a do Gaivota. Índice de rejeição altíssimo, porque era o mais barato àquela época e não tinha filtro. A mais rara e valiosa era a carteira de Cônsul, mentolado e meio doce, um pouco enjoativo. Tinha uma vantagem. Bom para namorar, falar de perto, diziam os acima de meu tope. E era mesmo. Antes de conhecer, quando eu queria beijar, depois de umas tragadas, eu sempre chupava bombons piper. Com o Cônsul não havia com que se preocupar, podia beijar sem medo.

Saudades daquele tempo, quando tudo era muito inocente e romântico. Assim como no cinema. Filme em preto em branco tinha que ter fumaça. Sem um entre os dedos nunca haveria uma mulher como Gilda. E nem como Rita. E aquele olhar oblíquo, impetuoso, de femme fatale da Lauren Bacall pro Bogart? O instante entre o riscar e o acender. Impagável. Nunca esqueci.

Os tempos são outros. Não existe mais aquele glamour. A cada dia o cerco se fecha ainda mais. Pra onde você se vira tem uma placa de espaço livre. Tem dias que eu me sinto como um cão vira-lata, ninguém quer por perto. Acho que ele também se sentia assim. Pertencemos a uma raça em extinção. Eu e o cinzeiro. Outro dia, numa festinha, rodei a casa toda à procura de um. Não encontrei. Tive que me virar com um copo descartável.

Quanto à tosse? Está sob controle. Não sou do tipo que é facilmente surpreendido. Não dou moleza pro azar. Faço visitas regulares aos médicos. Já a investigaram. Enfisema intersticial, uma bobagem. É certo – e esse detalhe eu omiti – que às vezes vem acompanhada de alguns coágulos avermelhados. Minha mulher diz que são de sangue. Eu digo que são margaridas que meu organismo não consegue digerir e são expulsas. É a palavra dela contra a minha. E enquanto isso, pra organizar as idéias, vou fumando. Enquanto ainda é permitido fazê-lo em alto-mar.

8 comentários:

f.wilson disse...

Rapaz, João, um leitor fumante consumiria seis cigarros na leitura do conto. Um cigarro para cada parágrafo, para cada parte que faz o refinado estilo desse conto.

Airton Sampaio disse...

É, poeta, mas como eu não sou mais de esquerda, se é que algum dia fui, então não acho o cigarro uma boa, não. aliá, é bom não incentivar... Agora o conto é bacana mesmo, estilizado, tarantular! Abração...

SUPREMATICO TRATADISTA FUNEBRE disse...

jlrocha dedicas para o Des. Wellington Jim "in memoriam'... AGRAVADO?

Anônimo disse...

kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk!!!!!!!!!!

Scotch Miller disse...

Malba Tahan escreveu maravilhosas histórias sobre o Oriente Médio sem jamais ter saído do Brasil (chamava-se, na verdade, Júlio César de Melo e Sousa).

Também Fernando Pessoa nos lembra que o autor é, antes de mais nada, um fingidor que sente a dor que nunca sentiu.

J.L. Rocha do Nascimento também envolve o leitor nessa fantasia e consegue descrever tão bem cada emoção que chega-se a pensar se não é também uma vítima do vício tabagista. Enquanto isso, na outra ponta, nos faz sentir a agonia de "fumar nas calças", mesmo que nunca se tenha "fumado nas ventas".

É o dom de escrever bem: cria um ambiente no qual nunca esteve e que talvez mesmo nunca tenha existido e ainda faz o leitor mergulhar nessa fantasia.

Parabéns!

J.L. Rocha do Nascimento disse...

Scotch Miller (cujo nome - ou pseudônimo - me faz lembrar dois prazeres distintos, mas que não chegam a ser um vício)posso assegurar o seguinte: não sou, nunca fui, um tabagista. Mas tenho amigos próximos que o são, além de parentes que já (o) foram. E isso dói. Meu conto é um libelo contra o fumo. Assim como os "Mr. Marlboro" e "Mr. Marlboro II - A recaída", também publicados neste blog. Confira.
No mais, agradecido pelas palavras estimulantes.

Kenard Kruel disse...

j. l. rocha do nascimento: tomei a liberdade, como sempre, de publicar o conto na kenard kaverna. como sempre, também, genial.

sábado tem festa no sítio cantal, emendando domingo. podemos esticar ao sariema, que começo a desconfiar que seja fruto da imaginação do grande e belo poeta que você é.

apesar de tudo - ou mesmo do nada - não se deixe de mim. beijos kenardianos.

SUPREMATECO TRATADESTA FUNEBRE-STF disse...

"ELÓGECO, EMORAL, ENÚTEL!"