domingo, 29 de julho de 2012

UM TARÂNTULA NO NINHO DOS POETAS


Peço uma cerveja. Quente. Só tem copo descartável, diz o garçom com aura de poeta. No primeiro gole, desisto. Peço um uísque. Não tem gelo, diz o barman, agora com mais aura de garçom do que de poeta. Fazer o quê? Bebo de um gole só. Puro álcool. Outro cavalo paraguaio, eu peço. O garçom, com o olhar de reprovação e postura de proprietário do estabelecimento, diz que estou enganado, o uísque é legítimo, selado, e que se eu quiser tenho que comprar a ficha antes. Não esquenta, cavalo paraguaio é um poema que estou trabalhando.

BR-3, o nome da banda, toca Voodoo Child. O vocalista anuncia que o microfone está à disposição de todos. Os bardos fazem fila, começam a declamar. O rio é o mote. Uma poetisa com os cabelos desgrenhados agarra o microfone e eu temo pela sua sorte. Gesticulando-se de forma desordenada, tal com uma aranha peçonhenta bêbada, tentáculos para todos os lados, as pernas parecendo duas palafitas movendo-se em areia movediça. Começa a berrar: preciso urgentemente fazer um poema sobre o rio de minha cidade. Na estrofe seguinte, troca a cidade pela aldeia. O pobre do guitarrista faz malabarismos para acompanhar o ritmo ora estridente ora sonolento. Repete os mesmos versos até cansar. Ao final, joga o microfone para um dos lados e se despede diante de efusivos aplausos. Dirige-se a uma mesa, onde lhe aguarda um grupo animado de jovens, um deles escreve um poema num rolo de folhas duplas de papel higiênico. No meio do caminho ela arranca um copo de cerveja das mãos de um, que apenas olha. Mais à frente, tropeça numa garrafa jogada pelo chão, quase cai, mas consegue sentar-se num banquinho de madeira e grita: garçom, mais uma, que eu preciso escrever urgentemente um poema sobre o rio da minha cidade.

Já vou pra quarta dose. E parece que ganhei a simpatia do garçom-poeta. Mandou comprar um pacote de gelo e água de coco, mas me fez prometer que tomaria pelo menos mais 03 doses.

O tempo passa. Os poetas continuam se revezando. O tema de sempre. Tem um que canta a beleza do rio coberto de aguapés. Ainda bem que não tem nenhum ambientalista por perto. Deixem o rio em paz, resmungo.  Peço uma caneta e um pedaço de papel e escrevo:
Cavalo paraguaio
Deus!, Deus!, por que me persegues?
Por que não me dissestes que eu nasceria para a morte?
Por que me destes um coração fraco?
Por que tenho que me deitar neste leito de Procusto?

Meu Deus! Isso não é um poema, é um pedido de socorro, reflito. E o que é que o dna do cavalo tem a ver com a ira divina, com a frágil condição humana? Nunca vou ser um poeta, concluo desolado.

A oitava dose eu tomo com gelo e água de coco. O dono do bar, poeta nas horas vagas como ele mesmo diz, e dublê de garçom aos finais de semana, agora é um poço sem fundo de sorrisos para comigo. Também, conseguiu recuperar o investimento e já tá no lucro.

Lá pelas tantas, me faz um convite. Quer que escrevamos um poema a quatro mãos. Lisonjeado, agradeço e gentilmente recuso. Percebo que não gostou e insiste. Apelo para o seu instinto patrimonialista e digo-lhe que ainda tenho reserva para mais duas doses, desde que ele guarde segredo do que vou dizer e não se ofenda. Pode falar, ele diz. Não sou poeta, sou contista, digo baixinho, olhando firme nos seus olhos, certificando-me, antes, de que não há ninguém por perto. A reação foi imediata. Deu dois passos para trás, quase cai. Seus olhos cospem fogo. Por um momento pensei que ele iria acionar os seguranças ou resolver a parada com as próprias mãos. Comecei a suar frio. À minha volta, pareceu-me que todos me olhavam com ar de rejeição. Deve ser o efeito do cavalo paraguaio, pensei.

De repente, para minha surpresa, meu interlocutor interrompe-me os devaneios, dizendo: tudo bem, você é um bom cliente. Sirvo-te mais duas doses, sem gelo e sem água de coco, mas com uma condição: nunca mais me volte aqui, entendeu?

Ao final da décima dose, me sentindo um estranho no ninho, saí dali como entrei, sem ser notado, e decidido a escrever este conto.

domingo, 22 de julho de 2012

BRUTA FLOR

Senhor Juiz de Direito da outrora bucólica Bodas do Sertão,


este agora largado homem, na pia batismal PEDRO nominado, desde os idos de Juno de 2011 sem PÉTALA DE OLIVEIRA, brasileiríssima, bordadeira de mão cheia, vivente hoje em lugar incerto e não sabido, vem dizer-lhe, dolorosamente, DOS FATOS:


1. O primeiro amor passou.
    O segundo amor passou.
    O terceiro amor passou.
    Como os corações continuavam, casamos no Dia de Santo Antônio, 1996 anos após a Grande Epifania. Ela estava linda no decotado vestido branco de cauda longa e, exultantes dentro daquela noite banhada por insistente chuva fina e aromada com inesquecível cheiro de terra molhada, achávamos que seríamos (quanta arrogância!) felizes para sempre...


    2. Não tivemos filhos; não transmitimos a nenhuma criatura o legado  de nossa miséria.
   
   3. Também nunca nos ardeu o desespero de ser dono de nada.


   4O motivo desse vazio, pleno da presença de uma ausência, a razão mesma disso a que os líricos chamam de Saudade? Não há motivo, nem razão. O amor acaba, seu Juiz!
   
   5. E, pensando bem, se acabou, não era amor...
   
   6. Ainda assim, não é porque SEI que ela não voltará que não hei de lhe deixar a porta, eternamente, aberta.  
__________________
PEDRO UMBRA
FEITOR DE FACAS
Rua da Soledade, 11
Cristal Quebrado - PI
__________________         

DO DIREITO E DOS PEDIDOS:


Em face do exposto, nos FATOS, pelo constituinte, 


LUÍS SOTERO, causídico (OAB 1635) infra-assinado que representa legalmente o já supraqualificado artesão, consoante mandato anexo, vem, respeitosamente, a V. Exa, com fulcro no CCB, em especial nos arts..., PEDIR, por ser justo e de direito, que... 

domingo, 15 de julho de 2012

É UMA MANHÃ APRAZÍVEL,


pensa, enquanto, sentado no banco, observa jovens na grama.  Em pequenos grupos, ou aos pares, mostram-se viçosos.  Volta a sua atenção ao desespero de Luísa diante da chantagem de Juliana.  Não se concentra na leitura: a algazarra juvenil o incomoda.  Uma moça olha-o.  Envaidece-se.  Imagina-se ainda atraente.  Instintivamente, afaga o seu saco e o seu pau.  Velho saliente, ouve da jovenzinha.  As amigas, festivas, recebem-na, e, em seguida, todas o olham. O desprezo é evidente.  Sorri diante de sua capacidade de desnudá-la por completo. A moça que o chamou de velho saliente, por exemplo, de costas, cabelos quase a alcançar a bunda, que lhe chama a tocá-la, a abri-la.  Vez por outra, o movimento do corpo torna o seio ponteiro de uma bússola que indica o paraíso. As outras mostram-lhe as bocetas (imagina!) saradas.  Quase que todos os seios, tão acanhados, enganosamente colocam-nas como impúberes. Uma jovem, deitada de bruços na relva, absorta em uma leitura, faz-lhe deter sobre a sua bunda, linda com dois montes irmãos, pronta para ser coberta.  Lembra de Maria, aquela infeliz. Miseravelmente, depois de lhe sugar suas posses e sua virilidade, deixou-lhe apenas com HPV e a capacidade de fantasiar orgias.  Levanta-se, deixando o parque para trás.  Atravessa a avenida.  Entra no edifício que mora.  Rapidamente, adentra ao apartamento. Displicente, lança o português sobre o sofá. Faz uma trilha com os calçados, a camisa e a cueca, o que, no passado, não seria possível. Alcança a corda pressa ao parapeito da varanda. Veste o laço em seu pescoço, e, povoada a memória com bocetas, seios e bundas, salta para fora.

domingo, 8 de julho de 2012

JIM MORRISSON SOBE AOS CÉUS


                                                                                              Zaira, este é pra você

- Anda, acende meu fogo, me leva pro outro lado.

- Tarde demais, baby, tarde demais. Eu já estou lá, mas eles chegaram antes.

- Eles quem?

- Os mesmos, os mesmos que tingiram de sangue as botas de Lorca. Já estão no corredor. Não há mais tempo.

- Abra a porta, me leva...

- Você não iria gostar. Não tem fim.

- Não importa, quero ir.

- Não, não iria gostar de ver.

- Mas não é um jardim de tulipas brancas?

- Não mais, baby, não mais. Não fui Ulysses o suficiente. E o gosto amargo daquele beijo não sai de mim, não sai.

 - O que você vê agora?

- O horror, o horror, e depois um jardim de pedras a perder de vista.

- Volta então, não me deixe, tenho medo.

- Tarde demais, baby, tarde demais, this is the end. Eles já exibem minha cabeça numa vitrine.

- Onde?

- Você não está vendo?

- O quê?

- Os cavalos, os cavalos! Eles foram jogados ao mar, sem nenhuma chance, sem nenhuma chance.

- O que faço eu então, Jim?

- Lembre-me pelas palavras, baby, pelas palavras, apenas isso, em memória de mim.




domingo, 1 de julho de 2012

GARÇOM!



Eu, se o autor do conto, retiraria do título a locução adjetiva.
— O Quarto Quarto da Casa... O Quarto Quarto. Gostei!
Cortaria também a terceira página.
— Toda?
É. Esse namoro aí é imbecil.
— Um pouco piegas, talvez...
Não. Imbecil, mesmo.
— Porque o cara é do tipo que ainda manda flores?
Detesto flores.
— Eu sei. Mas ele, não.
Corte esse namoro.
— Já mudei o título...
Suprima o namoro.
— Aí a mensagem de perdão, que quero passar, some...
Literatura não tem que ter mensagem.
— Mas sempre há mensagem...
Pois o leitor que a ache, com lupa.
— E pensar que você já foi um escritor engajado...
Erro de extrema juventude, meu amor, isso.
— Não sou mais tão jovem, eu, é certo.
Você é linda!
— Olhe, se eu encerrar aqui, perco o desfecho.
Fecha no clímax...
— O leitor não gosta assim, eu acho.
E a vida?
— Que é que tem a vida?
A vida por acaso é do jeito que gostamos?
— Estou falando de literatura.
Ah, tá...
— Certo. Namoro eliminado. E agora?
Agora é podar a segunda página.
— Inteira?
É. Conto não é oceano que se derrama, mas dique que o contém.
— Viva! Você gostou da minha frase de abertura!
Conto com duas páginas já é oceano que se derrama...
— Se eu fizer assim, não destruo o clímax?
Para criar, destruir é preciso.
— Mamalujo bateu a porta atrás de si.
Ponto final.
­— E o leitor?
O leitor que preencha as lacunas, ora.
— Não pode ser assim...
Deve. Ou você escreve para vender sabonete?
— Lá vem me acusar de publicitária...
E não é?
— Tá bom. Fora, clímax!
Agora, inscreva o conto.
— Tenho chance?
Não, mas tem um conto.
— Quero ganhar!
Então mantenha o título original, reponha o namoro imbecil, preserve o clímax e deixe aí, intocado, o tal desfecho.
— Acha que ganho?
Com esse texto de primeira mijada, sim.
— Você os subestima...
Eles merecem. Vamos beber?
— Vamos.