segunda-feira, 15 de agosto de 2011

MINHA TIA E O PÃO DE AÇÚCAR DE ALGODÃO-DOCE*


Era só um retrato na parede. Olhei rapidamente, antes de sair. Foi o bastante. A primeira vez que entrei num cinema fui levado pelas suas mãos. Mas essa história eu conto depois. Do que eu quero mesmo falar agora é de como, graças a ela, o Pão de açúcar entrou na minha vida. Lembro-me como se fosse hoje. Ela tinha acabado de chegar do Rio de Janeiro, capital do Estado da Guanabara, fazia questão de acrescentar. Ainda pensava em se casar. Julgo pelas fotografias de biquíni, na praia de Copacabana. Muito bonita. Avaliando pelas fotos, nada indicava que tempos depois seria vítima de um mal que a marcaria por toda a vida.

Esteve no Rio a convite de um primo, estudante de medicina. Primeira vez numa praia. Não foi sozinha, teve a companhia da irmã do primo, que se não fosse assim nossa avó não permitiria. Retornou falando em bossa-nova, garota de Ipanema e de um rapaz cheio de espinhas no nariz cantando desafinado. Colocou um disco na vitrola pra eu ouvir. Não entendi nada. Também, naquele tempo, no meu universo só havia lugar para as jovens tardes de domingo. Mas o que mais me chamou atenção, além das fotografias, foi o fato de ela falar para mim que tinha andado de bondinho no Pão de açúcar. Quando falou em pão de açúcar, eu juro, me deu água na boca. Pensei logo. Deve ser uma montanha de algodão doce. Do jeito que falava parecia ser um lugar, só que eu não conseguia compreender alguém andando de bonde num pão de açúcar. Tinha vergonha de perguntar se o pão de açúcar era feito mesmo de açúcar. Temor reverencial. Ainda pequeno vim para a capital, eu e minha irmã mais velha. Morávamos na casa de nossa avó materna, então já viúva, e com duas tias, filhas suas, uma delas veio a se casar.

Nunca cheguei a fazer aquela pergunta à minha tia. De tanto matutar, descobri que só tinha um jeito de saber. Aguardar o moço que vendia algodão-doce. Ele sempre passava na nossa rua. Era só esperar até o próximo fim de semana.

Foi num sábado, à noite. Naquele dia eu tinha um motivo a mais para comprar algodão-doce. Quando o homem chegou com o carrinho, se dirigiu até ao canto da praça, no local de sempre, ali debaixo daquela algarobeira que hoje não existe mais. Logo em seguida, acendeu o lampião e começou a anunciar em voz alta: “Olha o algodão doce!” Mais alto do que ele eu só me lembro do amolador de tesoura quando passava de porta em porta. Corremos numa algazarra só, os meninos. Quando chegamos, não tomei a dianteira de ninguém, nem mesmo dos menores que eu. Não tive pressa, fiquei por último. Para melhor apreciá-lo fazendo algodão-doce. Rodava aquela manivela, de onde saía um ruído surdo e arrastado. Jamais esqueci aquela geringonça girando, o lampião aceso, as mariposas em volta, os mais velhos dando cocorotes nos pivetes. “Não cheguem mais perto, que é quente”, costumava avisar. A maior expectativa era a de ver os primeiros fios de algodão surgindo, de tão branquinhos me lembravam a cabeça do meu finado avô. O cordão engrossava pouco a pouco, se avolumava até não caber mais, quando então ele parava, mandava fazer fila e, à medida que ia recebendo o dinheiro, enrolava a bola de algodão-doce num pedaço de papel de embrulho. Enquanto não chegava minha vez, fiquei imaginando como seria possível com um carrinho daquele, e somente com a força do braço, fazer uma montanha de algodão-doce. Quero dois, disse eu, quando chegou a minha vez, já salivando somente de imaginar a primeira bola desmanchando na boca. E enquanto ele enrolava o meu, criei coragem para fazer a pergunta. Respirei fundo. “Moço, é verdade que lá no Rio de Janeiro tem uma montanha de algodão-doce?” “Quem te disse isso?” “Minha tia, só que não com essas palavras, quer dizer, ela disse que tem um pão de açúcar e que passeou de bonde nele.” Ele apenas riu, enquanto meneava a cabeça.

Saí dali imediatamente, envergonhado. Se arrependimento matasse... Ainda bem não havia mais nem um só menino maior do que eu por perto. Mangação na certa. Depois daquele dia nunca mais comprei algodão-doce diretamente das mãos do moço. Não que eu tivesse ficado com raiva, era vergonha mesmo. Quando ele chegava, eu pedia a minha irmã pra comprar. Só se tu me der um pedaço, dizia ela. Fazer o quê, tinha que concordar. Tempos depois, ele deixou de passar na rua. Acho que coincidiu com a chegada do parque de diversão na praça. Tinha sempre alguém vendendo algodão-doce e o bom era que era colorido, você podia escolher a cor. Mas não tinha muita graça não. A gente não podia chegar perto, não via o algodão sendo feito, não saía quentinho, não havia mariposas atraídas pela luz do lampião, nem manivela, muito menos o ruído da engrenagem, enfim não tinha aquela mesma magia. E coitados dos meninos de menor tope que não tinham dinheiro pra comprar! Pra eles não tinha jeito mesmo. É que, no tempo do carrinho, depois do moço atender os grandes, os traquinas vinham por trás, sorrateiramente, à cata das sobras. Recolhiam com o dedo os miúdos torrões de açúcar e depois levavam à boca. E ao menor sinal de que eram flagrados se punham a correr, lambendo os dedos e os beiços.

Alguns anos mais tarde, na aula de Geografia Humana, afinal compreendi o que era o tal do Pão de açúcar que minha tia tanto falava. Foi quando o vi na gravura de um livro, assim como o bondinho suspenso no ar por um cabo de aço. Não me contive. Eu me ri. A professora me repreendeu, pedindo que eu prestasse atenção. Hoje, passados tantos anos, às vezes ainda me ponho a pensar por que diabos eu cheguei a imaginar aquilo tudo. Será que pela cabeça dos outros meninos deu-se a mesma fantasia? Será que algum deles ficou com água na boca? Será que fizeram a mesma pergunta para o homem do algodão-doce?

Minha tia nunca mais retornou ao Rio de Janeiro. Continua solteira, ficou mesmo pra titia, como se costuma dizer. O primo? Formou-se em medicina e casou-se com uma colega da faculdade, com quem teve vários filhos. Por esse tempo, ela adoeceu. Até hoje não tem a percepção de que o Estado da Guanabara não existe mais. Quase não saí do quarto e, quando o faz, é para passear de bonde no Pão de açúcar. Ou então para ouvir “Só tinha que ser com você”, num bar de Ipanema. Na parede, outras fotografias, além daquela que mexeu com as ruínas do tempo. É onde guarda a memória de seus vinte anos. Abraçada com o primo, então quintanista de medicina. É quando imagino que aquele passeio ao Rio de Janeiro foi mais, bem mais que um simples veraneio.